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Publication type: news
Segatto C.
Os médicos ganham presentes. Você paga a conta
Epoca 2009 Mar 13
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI26675-15230,00-OS+MEDICOSGANHAM+PRESENTES+VOCE+PAGA+A+CONTA.html
Full text:
Os gastos com artigos promocionais tornam os remédios 20% mais caros
Uma das coisas que mais me incomodam quando vou ao médico é encontrar um propagandista de laboratório que não trabalha com discrição e respeito aos pacientes. Nem todos agem assim, mas já fui testemunha de várias cenas lamentáveis.
Um pouco antes do Natal, estava num consultório neurológico. Na sala de espera encontrei pessoas com todo tipo de fragilidade: velhinhos com várias formas de demência, homens de meia idade com sequelas de AVC, gente que perdeu a independência e muito da dignidade. E familiares que, de uma hora para outra, viram a vida virar do avesso.
Lugares assim me fazem pensar que não posso reclamar da vida se sou capaz de andar, falar e pensar por conta própria. Minha reação a esses pensamentos é o silêncio. Um silêncio respeitoso.
Mas duas mocinhas propagandistas não pareciam nem um pouco sensibilizadas pelo ambiente. Fofocavam alto como duas matracas que se encontram no cabeleireiro. Uma delas explicava à outra como impressionar os médicos gastando pouco. Dizia que havia comprado umas latas de bombons nas Lojas Americanas e melhorado a aparência do brinde com um vistoso laço de fita. Segundo ela, o mimo criava “a maior presença”.
Num outro dia, estava num restaurante e ouvi a conversa em alto volume de duas outras propagandistas. Uma delas estava orgulhosa por ter descoberto qual era a flor favorita de uma determinada médica. A colega logo registrou a informação estratégica em seu palm.
Sabe o que acontece quando a indústria farmacêutica bajula os médicos? Você paga a conta. Gastos com esse tipo de promoção tornam os remédios pelo menos 20% mais caros, segundo a professora Marcia Angell, da Harvard Medical School, autora do livro A Verdade sobre os Laboratórios Farmacêuticos.
Lembrei dessa história nesta semana quando li um artigo sobre o envolvimento dos médicos com a indústria farmacêutica publicado no The New England Journal of Medicine. O autor Robert Steinbrook comentava as novas medidas adotadas nos Estados Unidos para garantir mais transparência a essa relação complicada.
Segundo Steinbrook, a indústria farmacêutica gasta US$ 7 bilhões a cada ano para promover seus produtos junto aos médicos nos Estados Unidos. O valor inclui a divulgação de informações médicas para os professionais e também gastos com presentes que variam de simples canetas a convites para shows e viagens.
“Os presentes não são realmente grátis”, escreveu Steinbrook. “Até brindes baratos podem influenciar o comportamento dos médicos.” É por isso que várias medidas estão sendo tomadas. A Associação Americana de Escolas Médicas (AAMC) determinou que todas as faculdades e hospitais-escola proíbam que alunos e funcionários recebam brindes e alimentação bancada pela indústria. A novidade passa a valer a partir de 1o de julho.
No mesmo mês entrará em vigor uma lei aprovada pelo estado de Massachusetts que proíbe alguns tipos de presente, restringe outros e exige que todos os pagamentos acima de US$ 50 feitos a médicos sejam divulgados na internet.
Menos presentes vão fazer diferença na forma como os médicos prescrevem remédios? Fiz essa pergunta ao pesquisador Ashley Wazana, da Universidade McGill, no Canadá. Há anos ele pesquisa os efeitos dos presentes da indústria farmacêutica sobre o comportamento dos médicos.
Wazana está otimista. “A lei de Massachusetts é um esforço admirável com uma mensagem clara de investimento no profissionalismo dos médicos”, afirma.
É difícil acreditar que uma simples caneta faça um médico receitar uma droga em vez de outra mais barata e eficaz ou fazer prescrições desnecessárias. A maioria dos médicos tem ética e discernimento suficientes para escolher o que é melhor para cada paciente.
O que os pesquisadores argumentam, porém, é que muitas vezes esse processo de convencimento é irracional. Segundo eles, estudos sociológicos e psicológicos demonstram que os brindes criam na pessoa que os recebe uma necessidade inconsciente de retribuir.
Algum efeito os presentes devem mesmo criar nos médicos. Caso contrário, a indústria não gastaria tanto dinheiro com isso. “É tudo uma questão de linguagem”, diz o médico Wanderley Marques Bernardo, professor da Faculdade de Medicina da USP e da Unilus, de Santos. “A linguagem baseada em recompensas e lembretes condiciona a prescrição acrítica”, diz.
Nesta semana, Bernardo deu a primeira aula aos calouros de medicina da Unilus. Perguntou quais deles possuíam canetas da indústria farmacêutica. Vários já tinham. Usou esse exemplo para explicar que a relação dos novos médicos com a indústria deve se limitar aos resultados obtidos pelas drogas em estudos confiáveis, publicados em periódicos científicos e criticados pelos pares.
No Brasil, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) editou em 2007 um código de conduta para as empresas afiliadas. Ele sugere que os brindes sejam de pequeno valor (até um terço do salário mínimo) e tenha caráter educacional. Presentes destinados ao uso pessoal (roupas, ingressos para shows ou eventos esportivos) devem ser evitados. Mas a adesão ao código é voluntária.
Os médicos não são os únicos que recebem brindes e convites para viagem da indústria farmacêutica. Jornalistas, políticos e outros “formadores de opinião” também recebem essas benesses e contribuem para o aumento do preço dos remédios na boca do caixa.
Nem todos aceitam os presentes. Entre os jornalistas, é infindável a discussão sobre quando se deve ou não aceitar o convite de uma empresa para a cobertura de um grande congresso médico internacional. No passado, viajei várias vezes a convite da indústria para participar dessas coberturas jornalísticas. Não acho que minhas reportagens tenham sido tendenciosas ou desrespeitado a inteligência do leitor. Mas acredito que esses convites criam no jornalista uma “boa vontade” em relação à empresa que o convida. E esse sentimento pode prejudicar o julgamento crítico que ele precisa fazer a todo momento na cobertura da indústria farmacêutica. Pode ser a tal necessidade inconsciente de retribuir que os psicólogos mencionam.
É por isso que há anos tenho recusado convites de viagem para cobertura de congressos – e vários deles me chegam a cada semana. Se quero ter independência para criticar os métodos da indústria na divulgação de seus produtos, preciso também cuidar do meu quintal. Não posso falar mal dos presentes que os médicos recebem e depois beber o vinho da classe executiva que a indústria me proporciona. Assim como os Estados Unidos fizeram, está na hora de o Brasil encarar essa discussão.
O que você acha? Queremos ouvir a sua opinião.