Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
Propósitos e relevância do estudo realizado
Uma política de medicamentos contempla um conjunto de princípios
que devem nortear a tomada de decisões e as ações a serem implementadas.
Incluem pois, os objetivos e estratégias que articulam as normas relativas a
todo o setor farmacêutico. Entre os objetivos gerais, da supramencionada
política, cumpre destacar:
• facilitar a obtenção de medicamentos necessários;
• promover o uso racional dos medicamentos;
• configurar uma oferta de medicamentos ajustada às necessidades médicas
do país e que os mesmos sejam eficazes, seguros e dotados de qualidade;
• promover a infra-estrutura requerida para a fabricação local dos
medicamentos essenciais (Sobravime/AIS, 2001).
Avanços normativos importantes foram, de certo, alcançados no Brasil,
particularmente a partir da criação da ANVISA27 e da promulgação da nova
política de medicamentos para o país (Ministério da Saúde, 1998a). Algumas
das estratégias e diretrizes propostas no novo diploma legal, para se atingir o
uso racional dos medicamentos, são de todo pertinentes e algumas delas já
tiveram em grau maior ou menor sua implementação iniciada, devendo-se, à
guisa de exemplos, realçar:
• elaboração de um formulário terapêutico nacional;
• revisão/atualização da RENAME (Ministério da Saúde, 1998b);
• implementação de um programa de medicamentos genéricos28;
• retirada do mercado ou restrições de uso, exigência de alteração na
fórmula de produtos que apresentam riscos e que já haviam sido
banidos em outros países29;
• revisão da legislação que trata da propaganda de medicamentos em
suas diversas formas30.
27 A ANVISA, autarquia sob regime especial, foi criada pela Lei 9.782, de 26.01.1999, tendo como missão
precípua “proteger e promover a saúde da população garantindo a segurança sanitária de produtos e serviços e
participando da construção de seu acesso”, pretendendo atuar como “agente da transformação do sistema
descentralizado de vigilância sanitária em uma rede, ocupando um espaço diferenciado e legitimado pela população,
como reguladora e promotora do bem-estar social” e explicitando como valores que norteariam seu
desempenho “ o conhecimento como fonte da ação, Transparência, Cooperação e Responsabilização”. Informes
completos sobre atividades da Agência estão disponíveis na sua página web www.anvisa.gov.br
28 No início de 2000, chegaram ao mercado os 10 primeiros ‘genéricos’ (ampicilina, ranitidina, cefalexina,,
cloridrato de metoclopramida, oxacilina sódica, cloridrato de lincomicina, claritromicina, salbutamol, furosemida
e cetoconazol) de uma série que, no início de 2003 atingia um montante de 635 produtos com 1111 apresentações
(Vide dados suplementares sobre o tema no item 3.9 e no Apêndice)
29 Portaria da ANVISA, de 19.04.2001, proíbe a produção e comercialização no país de 10 produtos à base de
cisaprida (fármaco indicado para doenças gástricas e que, nos Estados Unidos, havia sido incriminado como
responsável por 341 casos de arritmia cardíaca e 80 mortes, segundo constatação da FDA) e de 10 outros que
continham em sua fórmula o astemizol, (utilizado como antialérgico) como principal componente.
30 Em 01.12.00 foi publicada Resolução 102 da Diretoria Colegiada da ANVISA, de 30.11.00 (Regulamento
aplicável “às propagandas, mensagens publicitárias e promocionais e outras práticas cujo objeto seja a divulgação,
promoção e/ou comercialização de medicamentos de produção nacional ou importados, quaisquer que
sejam suas formas e meios de veiculação (Diário Oficial da República Federativa do Brasil, 2000). O acompanhamento
do cumprimento da nova regulação vem se fazendo com o envolvimento de 14 universidades federais.
Os resultados preliminares avaliando pouco mais de três mil anúncios veiculados na mídia, entre outubro de
2002 e maio de 2003, indicam violações importantes das normas. Tanto é assim que, com respeito a produtos
de venda livre em 13% não constava advertência obrigatória; 22% continham símbolos que podiam levar …
Apesar dos passos dados, alguns deles bastante significativos em favor
do uso mais adequado dos medicamentos, muito há ainda a ser feito, seja no
aprimoramento da legislação, seja na implementação da mesma. Há que
ressaltar a persistência de deficiências significativas, em especial no que tange
ao controle efetivo das estratégias promocionais adotadas pelos produtores
que continuam sendo feitas com pouca ou nenhuma aderência aos critérios éticos propostos pela OMS (OMS, 1988b). A qualidade da informação que é oferecida aos profissionais de saúde e ao público consumidor é tendenciosa
e indutora de práticas de prescrição e consumo que deixam muito a desejar
(Barros, 2000).
O Programa de genéricos (vide item 3.10) ainda tem muito a avançar
para cumprir os objetivos a que se propõe ou para chegar a ter a importância
que têm esses produtos em outros países. O sistema de farmacovigilância,
apenas recentemente, definiu estratégias e princípios para sua implantação
(Anvisa, 2001) tendo sido estimuladas experiências-piloto, cabendo esperar
que o desenvolvimento mais recente, sobretudo em termos normativos e com
a implementação do Centro Nacional de Monitorização de Medicamentos
(CNMM) (vide item 2.8), possa fazer frente à magnitude do problema e à
necessidade correlata de operacionalizar instrumentos de efetiva vigilância
pós-comercialização, com todos os ganhos em termos de Saúde Pública daí
decorrentes (Matos, 1995; Hartzema, 1991; Strom, 1994).
Pelo que se comentou, justifica-se o interesse em detectar a existência
de regulamentação eficaz e os instrumentos adotados para sua observância
em sociedades onde os interesses comerciais puderam em maior medida
subordinar-se aos interesses da saúde e do bem-estar dos usuários de produ-
… a interpretações falsas; em 16% dos casos não se incluía a contra-indicação principal e em 15% ausência de
efeitos colaterais ou havia expressões do tipo “seguro” ou “produto natural”. Quanto aos produtos que requeriam
prescrição, em 37% não se mencionavam cuidados ou advertências e em 18% não se aludia às contraindicações
(Anvisa, 2003). Em uma segunda etapa de avaliação, com 1772 peças publicitárias avaliadas (das
5930) que foram captadas, até dezembro de 2003, a despeito de discreta melhora, persiste o descumprimento
da norma em vários dos seus preceitos (as três principais infrações diziam respeito à não inclusão da contraindicação
principal (15,90%); o produto não estava registrado (15,70%); havia inclusão de afirmações do tipo “recomendado”, “aprovado” (11,30%).
Selecionando 100 propagandas veiculadas para o grande público pela mídia, recente dissertação de Mestrado,
apresentada no IMS/UERJ, efetuou profunda avaliação crítica das mesmas concluindo que todas elas
descumprem a legislação e no seu conteúdo enaltecem as características favoráveis do medicamento, muitas
vezes atribuindo uma onipotência duvidosa e uma posição central na terapêutica, sem apresentar uma sustentação
com base em dados científicos (Nascimento, 2003).
tos e/ou serviços relacionados à saúde. Os resultados do estudo por nós
realizado certamente poderão vir a representar subsídios na reorientação,
bem como no aprimoramento do que já vem se fazendo, quanto à política de
medicamentos, em nosso país.
A intensificação do intercâmbio comercial no mundo globalizado de
hoje, com forte pressão dos países desenvolvidos, torna evidente os conflitos
de interesse, particularmente visíveis a partir da institucionalização da OMC
(Organização Mundial do Comércio) e dos Acordos ADIPC31, tal como já
comentamos. No campo farmacêutico, esses conflitos se agudizaram quando
das tentativas de alguns países, como é o caso do Brasil, Índia e África do Sul,
de utilizarem cláusulas previstas nos Acordos supramencionados (licença
compulsória e importação paralela), mas que vêm encontrando enorme
resistência das grandes multinacionais detentoras das patentes (Bermudez et
al. 2000; Barros, 2001a)32.
Nas duas últimas décadas, foram publicados diversos estudos abordando
diferentes aspectos do setor farmacêutico brasileiro, alguns deles representando
importante contribuição ao analisar o setor industrial farmacêutico, os
conflitos e interesses em jogo, presentes no âmbito do Estado brasileiro e as
relações de dependência para com as transnacionais e seus países-sede
(Giovanni, 1980; Cordeiro, 1985). Outros trabalhos procuraram elucidar
aspectos de natureza ideológica ou mesmo axiológica, presentes no consumo
de medicamentos (Lefèvre, 1991) ou tiveram como proposito refletir sobre
os condicionantes de uma política de medicamentos (Bermudez, 1995;
Bonfim & Mercucci, 1997)33. No entanto, a inexistência de trabalhos com
a especificidade pretendida no estudo ora realizado tornou necessária sua
implementação, na expectativa de contribuir para a tão desejada utilização
31 Os Acordos ADIPC obrigam os países signatários a conceder patentes por 20 anos para produtos farmacêuticos,
o que pode gerar agravamento da questão do diferencial de preços interpaíses (Balasubramaniam et al., 1998)
ou mesmo aumentando-os de forma exorbitante, dificultando, assim, o acesso a medicamentos básicos ou essenciais
para populações dos países pobres.
32 O caso dos anti-retrovirais é bastante ilustrativo. A redução de gastos a partir da produção de genéricos na Índia
e no Brasil (neste último caso, o tratamento anual/paciente, mesmo sem a produção local de todos os componentes
do coquetel, vem sendo da ordem de US$ 3 mil, quando nos EUA esse mesmo tratamento alcança os
US$ 15 mil) (Barros, 2001b).
33 Mais recentemente, no contexto de exaustiva revisão sobre Vigilância Sanitária no Brasil, o componente da
mesma relacionado aos medicamentos foi objeto de excelente reflexão no trabalho de Costa (1999), publicado
pela Sobravime.
dos medicamentos em favor do bem-estar e da saúde da população.
Enfim, a motivação básica que norteou o presente estudo foi identificar
os instrumentos regulamentadores existentes em relação aos
medicamentos, bem como o grau de implementação dos mesmos nos países
da UE, tomando como exemplos, para aprofundar o estudo, os casos da
Espanha e da Itália, comparando, ao final, a situação encontrada com o que
se tem feito, nesse campo, no Brasil.