Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
O fenômeno da medicalização
É provável que a expressão mais acabada das distorções e conseqüências
concretas do modelo biomédico, reducionista, de abordagem da saúde e
da doença na vida dos indivíduos resida no que se convencionou designar
como medicalização18.
Ivan Illich, por meio do seu livro Némesis medicale, l’ expropriation
de la santé, publicado em meados dos anos setenta, foi um dos pioneiros em
apontar os descaminhos da moderna medicina e sua sofisticação tecnológica.
Seu texto suscitou profícuo debate e, apesar de eventuais equívocos, contribuiu
para evidenciar as distorções do ‘complexo médico industrial’ e a necessidade
de redirecionamento na forma como estavam sendo estruturados os serviços
de saúde. Navarro, em 1975, mesmo ano da publicação do texto de Illich, em
crítica a algumas das teses do mencionado autor, chama a atenção para o fato
de que a industrialização e seus reflexos, no campo da medicina, são apresentados
como causa dos prejuízos à vida dos indivíduos e não como um elo no contexto
mais geral do sistema capitalista de produção e consumo (Navarro, 1975).
Inúmeros estudos têm sido feitos a respeito da sociedade de consumo,
da ideologia que o incentiva e da vinculação crescente do mesmo ao bemestar
e à felicidade. Uma bem elaborada e acessível síntese das relações
entre produção e consumo, no contexto do capitalismo, sob a ótica do
materialismo dialético, foi feita por Giovanni (1980). Na medida em que o
acesso ao consumo foi convertido no objetivo principal para o desfrute de
níveis satisfatórios de bem-estar, bons níveis de saúde passaram a ser vistos
como possíveis na estreita dependência do acesso a tecnologias disgnósticoterapêuticas.
A eficácia e efetividade das mesmas passam a confundir-se com
seu grau de sofisticação. Como decorrência inevitável do aprofundamento
no conhecimento dos pedaços do organismo, aparecem as super e subespecializações
desbancando o antigo clínico geral (de alguma forma ressuscitado,
na atualidade, com os médicos de família, tradicionais em países como Cuba
e, agora, presente no Programa de Saúde da Família, institucionalizado pelo
Ministério da Saúde brasileiro).
18 Revisão exaustiva do tema, contextualizada na trajetória evolutiva dos diversos modelos xplicativos do processo
saúde doença foi por nós realizada em artigo recentemente publicado para o qual remetemos os leitores interessados
no aprofundamento da questão (Barros, 2002a).
Os fenômenos referidos foram sendo instaurados ao longo da evolução
técnico-científica por que foram passando as ciências biomédicas e se intensificaram
no último século, consolidando o modelo biomédico e, como parte
dele, a medicalização. Esta pode ser entendida como a crescente e elevada
dependência dos indivíduos e da sociedade para com a oferta de serviços e
bens de ordem médico-assistencial e seu consumo cada vez mais intensivo
(Barros, 1984). Essa intromissão desmesurada da tecnologia médica passa a
considerar como doença problemas os mais diversos (situações fisiológicas ou
problemas cuja determinação são, em última análise, fundamentalmente,
de natureza econômico-social), como tal demandando, para sua solução,
procedimentos médicos. Não importa que – ou quiçá, é isto que interessa –
em muitos casos, os resultados obtidos constituam meros paliativos ou até
mesmo sirvam à manutenção do status quo. Neste último aspecto, aliás, é
oportuno apontar para o uso intensivo de ansiolíticos, presente em todas as
sociedades, desenvolvidas ou não e que se constitui em um exemplo notável
de fármaco que pode escamotear as causas da ansiedade, agindo como mero
paliativo (e os prescritores têm o dever de, quando os prescrevem, fazê-lo de
forma crítica e esclarecedora desses aspectos para quem vai tomá-los). Por
outro lado, tem razão Oliveira Júnior quando realça que alguns pacientes só
contam com a via somática para expressar seu sofrimento sendo o que ocorre
nesse plano a exteriorização do complexo processo subjetivo que é o
indivíduo. Mais adiante, nesse mesmo texto, o autor aponta que a ansiedade,
mesmo sendo vivida como uma sensação inespecífica de perigo iminente, é
um sinal de que algo não vai bem com o paciente. Portanto, pode não se tratar
de um perigo real, mas trata-se de um perigo vivido como real. O uso de
ansiolíticos isoladamente não desfaz a estrutura que gerou tal vivência nem
identifica a causa da ansiedade; apenas atenua os sintomas. Nessas circunstâncias
o uso abusivo de ansiolítico não só não resolve o problema na sua essência, como
também pode trazer consequências danosas para os pacientes...” concluindo que “o uso de ansiolíticos, também pode significar o desejo do médico de SILENCIAR
o paciente”19 (Oliveira Júnior, 2003).
19 Oliveira Júnior, refere, igualmente, existirem estudos de prescrições evidenciado serem os cardiologistas os que
mais prescrevem ansiolíticos, nem sempre de forma adequada (Oliveira Júnior, 2003).
Oxalá sejam verdadeiras as expectativas de Moynihan, mais adiante
apontadas, quanto a um maior grau de consciência dos indivíduos frente às
estratégias “medicalizadoras”. Em um outro texto20, o autor discute – e traz
exemplos esclarecedores – as alianças formadas entre empresas farmacêuticas,
médicos e organizações de consumidores, objetivando ampliar a consciência
de “problemas subdiagnosticados e subtratados”. Nas palavras do autor “the social construction of illness is being replaced by the corporate construction
of disease” (Moynihan, 2002a). Tomamos do autor mencionado exemplo da “medicalização da calvície” por acreditarmos que o mesmo é emblemático da
transformação de problemas do cotidiano ou que são parte da vida, em ‘problema médico’. Quando do lançamento do Propecia‚ (finasteride), na
Austrália, o laboratório Merck lançou mão de armas as mais diversas, desde
propaganda em ônibus (reproduzida no Apêndice) à utilização massiva da
mídia impressa, associando a perda de cabelos com traumas emocionais a ela
relacionados trazendo, ademais, à tona, “novo” estudo, segundo o qual um
terço dos homens experimentariam algum grau de perda de cabelos. A
matéria sugeria que a perda de cabelos poderia conduzir ao pânico e a outras
perturbações emocionais ou mesmo a um impacto negativo nas perspectivas
profissionais ou no bem-estar mental. Há que ressaltar que, mesmo estando
proibida a veiculação de propaganda direta ao consumidor do finasteride, o
laboratório continuou a tratar a perda de cabelos como um ‘problema médico’,
com persistente publicidade instando os calvos a buscarem o seu médico
(Moynihan, 2002b).
Com um largo período de suas vidas incluídos em diferentes momentos
do ciclo reprodutivo, isto é, no mínimo dos 12, 13 anos até os 50, as
mulheres têm sido alvo importante da indicação, publicidade e consumo,
com freqüência desnecessário de medicamentos, muitas vezes acarretando
danos importantes e intensificando a medicalização, inclusive de etapas
fisiológicas da vida que, ao serem redefinidas como ‘problema médico’ ampliam
significativamente os espaços para o mercado (mais adiante, comentamos o
caso da gravidez e do parto) (Wolfers, 1991). A medicalização da menopausa
e a promoção dos medicamentos psicotrópicos. (muito mais prescritos e
20 Evidenciando o interesse dos leitores no tema, como resultado de enquête realizada, o BMJ fez da medicalização
objeto particular de uma de suas edições (vol.324, de 13.04.2002).
utilizados pelas mulheres, em comparação com o seu consumo pelos homens),
são evidências de como a publicidade farmacêutica pode exercer impacto
social ou sobre a saúde, mais intensivamente sobre as mulheres, embora
inexistam estudos sistemáticos a respeito (Mintzes, 2002c).
Não será demasiado enfatizar o papel da propaganda, em suas diversas
formas de expressão, contribuindo para reforçar a medicalização e ajudando
sobremaneira a despolitizar a compreensão do processo saúde/doença e da
sua determinação social, tal como ressalta o estudo sobre publicidade farmacêutica
realizado por Temporão (1986).
O manejo da gravidez e do parto como se fosse uma “doença” e, por
isto mesmo, requerendo atenção permanente do aparato médico, é um
bom exemplo de algo fisiológico que é ‘medicalizado’, bastando citar, para
confirmar a assertiva, a multiplicação dos partos cesarianos, sem justificativa
técnica ou a monitorização sistemática da gravidez pela ultra-sonografia,
mesmo em grávidas sem nenhuma história pregressa ou atual que possam
vir a classificá-las como de ‘risco’. A redução, objetivamente mensurável,
da mortalidade perinatal e materna é atribuída, em caráter exclusivo, ao
moderno acompanhamento médico possível graças à aplicação de inovações
tecnológicas. É omitida a contribuição crucial, no descenso dos coeficientes
mencionados, da melhoria nutricional, melhor distribuição dos serviços
obstétricos básicos, redução da quantidade de certas categorias de gravidez de
alto risco (Taylor, 1979).
Não existia ainda a Internet, nem formas de organização e conscientização
dos pacientes e/ou consumidores, quando, há quase três décadas, Illich
chamava a atenção para a perda da autogestão dos indivíduos em relação ao
sofrimento, à dor ou à morte, componentes, segundo ele, da essência do ser
humano sendo um fato que todas as culturas engendraram formas de ajudar
as pessoas a fazer frente a eles, estratégias que teriam sido destruídas pela
moderna medicina. Para Moynihan, as pessoas contariam, agora, com a
possibilidade de mais e melhores informações sobre o curso natural das
doenças mais comuns, os pacientes estariam se capacitando a fazer melhores
julgamentos e a alcançar melhor apreciação sobre o valor efetivo da infindável
quantidade de exames e tratamentos disponíveis (Moynihan, 2002b).
Paralelamente às influências do mecanicismo e à extrapolação de seu
raciocínio do mundo físico, do universo, para o mundo dos seres vivos, a
medicalização sofre o impacto, a partir da revolução industrial que instaura
o capitalismo, da transformação de tudo em mercadoria, em princípio
destinada a produzir lucros. Está aberto o campo para a gestação do ‘complexo-médico-industrial’ e para a mais ampla possível mercantilização
da medicina, com todos os malefícios daí decorrentes, especialmente no
acesso não equânime e universal aos serviços médico-assistenciais, inclusive
aos essenciais e o que é mais grave, ainda, nas sociedades, como a nossa,
marcada por cruel concentração da renda e, a partir daí, de todos os bens
e serviços.
Neste linha de pensamento, Martins (2003) observa mui acertadamente
que “aos poucos, a biomedicina afastou-se das suas raízes históricas e
de seus compromissos éticos para aparecer como uma empresa comercial,
na qual os pacientes são apenas insumos e matérias-primas do processo de
acumulação capitalista. Essa perversão tornou-se possível pela separação radical
da relação interpessoal entre médico e paciente, separação obtida em grande parte
com o apoio da tecnologia utilitarista. Por conseguinte, a substituição da ética
médica tradicional por uma moral utilitarista, econômica especulativa, no
interior da medicina oficial, aparece necessariamente como um fator importante
para a crise do sistema médico como um todo e para as mudanças de aradigma
atuais”21.
Se é verdadeira a assertiva de que no Brasil há um intensivo processo
de medicalização, também é verdade que um grande contingente da
população continua à margem do consumo de medicamentos, muitos deles
supostamente essenciais, o que se dá, paralelamente, a um uso de produtos
desnecessários ou supérfluos para o que contribuem valores que passam a
erigir-se como fundamentais para a vida saudável22. O caráter ‘simbólico’, em
21 Paulo Henrique Martins efetua uma crítica profunda às práticas da biomedicina, acompanhada de uma exaustiva
apreciação dos novos paradigmas representados pelas chamadas medicinas alternativas em seu livro Contra
a desumanização da medicina – Crítica sociológica das práticas médicas modernas, cuja leitura recomendamos,
vivamente, aos leitores interessados no tema. Segundo o autor, novos estudos vêm pondo em questão os dogmas
do paradigma cartesiano clássico, tanto o relativo à metáfora mecânica, quanto o da suposta necessidade do
fracionamento do conhecimento médico. Para ele, “a mudança paradigmática é um fenômeno social total. Ela é política (enfraquecimento do Estado), econômica (incapacidade de resolução do problema de saúde pelas
regras do mercado de bens e serviços, psicológica (crescente mal-estar existencial e aumento das neuroses
coletivas) e científica (insuficiência dos velhos referentes conceituais inspirados na mecânica e na fisiologia
clássicas para as mudanças de paradigmas” (Martins, 2003).
22 Inquérito realizado, ao final de 2001, por acadêmicos de medicina da UFPE e por nós upervisionado, constatou
em amostra de 232 balconistas frente aos quais se solicitou produto para “adquirir um corpo esbelto e/ou…
grande medida ‘mágico”, no caso específico dos medicamentos, contribuindo
para uma verdadeira cultura da pílula tem sido objeto de atenção de
muitos trabalhos – alguns deles de nossa autoria – dentro e fora da área da
saúde ou da farmacoepidemiologia, cabendo chamar a atenção, além do de
Lefévre (1991), para os de Cabral Nascimento (2003) e Ferreira & Blanco
(2003).
O uso mais adequado dos medicamentos, ao lado de controles mais
estritos sobre o registro de novos produtos, implementação de um sistema de
farmacovigilância, indispensável ao acompanhamento das reações adversas
que surgem pós-comercialização, implica, entre outras estratégias, além de
rígido controle sobre as estratégias de mercadização, a disponibilidade de
informações isentas do viés mercadológico, tanto para prescritores, como
para consumidores. São múltiplas as evidências de que os produtores de
medicamentos investem intensivamente em atividades promocionais, tendo,
inclusive, um duplo padrão de conduta, conforme o país onde fabriquem ou
distibuam seus produtos e as informações que os acompanham (Schulte-
Sasse, 1988; US Congress OTA, 1993; Barros, 2000).