Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
OS RUMOS DO SETOR FARMACÊUTICO E AS ESTRATÉGIAS PARA TORNÁ-LO INSTRUMENTO EM FAVOR DA SAÚDE: Modelo econômico, reformas do setor saúde e assistência farmacêutica
O efetivo usufruto de níveis de saúde, essencial para que um dos direitos
fundamentais do ser humano viabilize-se, inclusive como parte da cidadania
plena, dependerá, em grande medida, de mudanças profundas no modelo
econômico-político dominante. Apesar da obviedade, vale reiterar que sem
esta pré-condição não se dará o redirecionamento das estratégias, diretrizes e
prioridades que permitam mudar a qualidade global de vida, por sua vez,
condição sine qua non para a obtenção de impacto imediato no nível de
saúde e no perfil sanitário. Já é demasiado conhecida a hipótese de que um
dos fatores determinantes para a crescente morbimortalidade por causas
externas (mortes e agravos associados à criminalidade e violência), predominante
nos centros urbanos do Brasil (sem deixar de existir, sobretudo, nas áreas mais pobres, taxas significativas de doenças infecciosas e parasitárias ou
devidas às condições nutricionais), reside, precisamente, no contraste entre a
opulência de poucos e a carência generalizada da maioria. A desigualdade
social, portanto, materializa-se em problemas urbanos concretos, deixando
de ser algo teórico, etéreo, que é o que pode ocorrer quando visualizado pelas
meras taxas e índices estatísticos. A correlação da mencionada desigualdade
com o alarmante incremento da violência é, pois, suficientemente evidente.
Do mesmo modo o é, o caldo de cultura conseqüente e que propicia as
condições para a explosão da criminalidade na medida em que milhões de
indivíduos, em geral habitantes dos imensos conglomerados suburbanos,
vêem-se entregues à desesperança e à falta de perspectivas.
No capítulo introdutório já havia sido feita alusão à globalização e ao
neoliberalismo dominantes como pano de fundo da problemática vivenciada
no Brasil, como em tantos outros países, sendo o setor saúde apenas um dos
múltiplos campos em que podem ser detectadas conseqüências dos
fenômenos supramencionados. O próprio Banco Mundial, em 1994, já se
mostrava pessimista quanto às possibilidades de reduzir, de forma significativa,
a pobreza, ao reconhecer a probabilidade escassa de êxito das estratégias
econômicas e sociais adotadas e que redundaram em baixos níveis de
consumo interno e perpetuação, em médio prazo, com ou sem a adoção de
políticas compensatórias, de iniqüidades política e socialmente inaceitáveis
(Brand, 1994).
Entenda-se, como o faz Gonzalez, que não cabe estabelecer um conflito
entre a eqüidade, o econômico e a ética, pois
el llamado problema da la equidad social, ademas de su dimensión moral,
solidaria, es tan económico como el del crecimiento. Por tanto situemos la
cuestión en un solo terreno, no en una falsa pugna entre lo “moral” y lo “científico”. Sin economías internas sólidas fuertes, con un reparto del
ingreso que mejore la capacidad de compra de las mayorias sociales,
América Latina no encontrará el camino de salida hacia el desarrollo. Y
en esa ruta, la educación y la formación, la atención sanitaria y la vivienda,
asi como el desarrollo de las infraestructuras y los servicios, forman parte
del paquete redistributivo imprescindible (Gonzalez, 2002).
É fato incontestável que, como fruto das mudanças econômicas, têm
aumentado as taxas de desemprego, associadas, por sua vez, ao incremento
das doenças no contexto da degradação individual e familiar, deterioração
das condições nutricionais e da saúde mental, acompanhadas das dificuldades
de acesso aos serviços de saúde e aos medicamentos. É notável, de
igual forma, a constatação de que as doenças infecciosas emergentes seriam
as que maior correlação apresentariam com a globalização. Incluem doenças
cuja incidência tem aumentado nas duas últimas décadas ou se prevê venham
a crescer em futuro próximo, para o que contribuiriam o aumento nas
viagens internacionais, importação/exportação de alimentos, crescimento
da população e urbanização, deslocamentos populacionais, alterações
ambientais (destruição de florestas, irrigação, aumento do uso de pesticidas
e antimicrobianos), mudanças comportamentais, sobretudo no plano da
sexualidade, contatos aumentados com áreas de florestas tropicais ou com
hábitats selvagens, potenciais reservatórios de insetos e animais que albergam
agentes infecciosos (Lindeberg, 1992, apud Buss, 2002).59
Vale ressaltar que, tanto o Banco Mundial como o BID, além de
outras instituições internacionais, incluem-se entre os formuladores e incentivadores
(e, também, financiadores com recursos cuja liberação passam a
depender da subordinação a determinadas políticas) de receitas seguindo
a cartilha neoliberal e que foram aplicadas em diferentes países latinoamericanos.
De forma resumida, os fundamentos impostos para o financiamento
de projetos ou programas no setor saúde, implicavam (Infante, 1997):
• a cobrança de taxas aos usuários, em especial para medicamentos e
medicina curativa;
• incentivo aos seguros privados de saúde como estratégia privilegiada
para aumentar a cobertura;
• estímulo ao setor privado, com ou sem fins lucrativos, para atuar na
assistência curativa, responsabilizando-se o Estado pelas medidas
preventivas; e
• incentivo à descentralização, planificação e orçamentação dos serviços
públicos de saúde.
Fazemos nossas as palavras do sociólogo francês Alain Touraine
quando em artigo aludia que
59 Um exemplo bastante atual de doença emergente que está causando espécie em termos amplos, com
impacto na economia (sobretudo nos setores relacionados ao turismo) é a Síndrome Respiratória
Aguda Severa (Sars) que, em tão-somente um trimestre, desde seu aparecimento, afetou oito mil
pessoas, (mais de cinco mil delas, na China, 140 no Canadá e 65 nos EUA), com 682 óbitos
(Anônimo, 2003h), o que levou a OMS, em sua 56ª Assembléia Geral, em 2003, a revelar ter gasto
cerca de quatro milhões de dólares na luta conta a doença, tendo o diretor do Departamento de
Enfermidades Transmissíveis da Organização, Dr. David Heymann, anunciado o projeto de criar um
fundo de investigação específico, congregando laboratórios farmacêuticos e instituições bancárias
(Anônimo, 2003a).
a globalização proclama a superioridade de uma economia mundializada
sobre todos os processos de controle, exercidos em nível nacional. Em seu
nome, falou-se muito no declínio dos Estados nacionais, quando a realidade
observável não corresponde a esse tema de propaganda que busca
afirmar o direito de um capitalismo sem controle nem regras a dominar o
mundo. Durante alguns anos, o que chamamos de neoliberalismo pôde se
justificar pela crise dos modelos econômicos e sociais do pós-guerra, todos
contidos em nível nacional e dando um papel central ao Estado. Mas há
muito tempo as vantagens da “abertura das economias” são menores que
seus prejuízos e mesmo que seus absurdos. Dois grandes tipos de crítica
podem ser feitas ao capitalismo extremo. O primeiro é que ele aumenta
a desigualdade e a exclusão e desencadeia graves crises regionais. Essas
acusações são sérias, principalmente depois do fim do longo período de
crescimento econômico dos Estados Unidos. Mas o segundo é ainda mais
grave e foi formulado há muito tempo por economistas prestigiosos. O
crescimento depende cada vez mais de fatores sociais como a educação,
a organização do Estado, o modo de “governança” e também o modo de
distribuição do produto nacional (Touraine, 2002).
O incremento persistente dos gastos com assistência sanitária, observado
a partir dos anos 70, provocou nos países europeus o estabelecimento
de gama variada de medidas de contenção dos mencionados gastos. Salientese
que o incremento referido tem a ver com o envelhecimento da população
e o conseqüente aumento das taxas de doenças crônico-degenerativas, assim
como com a disseminação de novas tecnologias, crescentemente sofisticadas,
dispendiosas e, vale recordar, com emprego, com grande freqüência ditado
pela lógica de mercado, intensificado pelo processo de medicalização
(Barros, 2002).60 Aliás, o tema do futuro da previdência social, é parte
destacada da agenda de discussão e preocupação contemporâneas dos
governos de diferentes países desenvolvidos61 (no Brasil, o tema que havia
60 Estimativas disponíveis dão conta de uma proporção de serviços prestados desnecessários, da ordem de
30% a 60% no Canadá e de 30% nos EUA (Mossialos, 1997).
61 Em abril e maio de 2003 ocorreram diferentes mobilizações de protesto na França, Alemanha, Áustria
e Itália contra os cortes anunciados nas pensões: redução de benefícios, endurecimentos dos pré-requisitos
para seu desfrute, ampliação do limite de idade para aposentadoria – ressalte-se que esses protestos se
ocupado enorme atenção do governo anterior, volta a assumir prioridade
e discussões acaloradas no novo governo), com realce no diagnóstico
do esgotamento do modelo, sobretudo pelo déficit (distância entre
arrecadação e gastos com pensões) e sua pretensa solução na adoção de
modelos privados (Anônimo, 2003d).
É incontestável o fato de que, quando Bismarck implantou na
Alemanha, no final do século 19, o primeiro sistema de pensões, a esperança
de vida européia não passava dos 50 anos (hoje, supera os 76). Contribuem,
pois, para o desequilíbrio observado na proporção entre contribuintes e
aposentados, não somente o envelhecimento da população antes mencionado,
mas também as baixas taxas de natalidade, as mudanças implementadas na
regulamentação do emprego, sendo ilustrativo, nesse aspecto, a proliferação
dos contratos de trabalho temporários, além da própria crise observada na
oferta de trabalho, o que tem gerado uma incorporação cada vez mais tardia
dos jovens, e barreiras, apesar dos avanços ocorridos, à luta das mulheres
em ampliar seus espaços no seio da população economicamente ativa, com
igualdade de direitos com respeito aos homens.
Procurando atuar, ora sobre a oferta, ora sobre a demanda, as medidas
dirigidas à contenção de gastos, podem, a título de exemplo, contemplar
(salientando-se que, habitualmente, essas medidas não são tomadas de forma
isolada; medidas dessa natureza, ainda que guardando suas especificidades,
foram tomadas em todos os países da UE – Mossialos, 1997):
• desconto no imposto de renda dos gastos feitos com contratos de
seguros ou com a compra direta de serviços médico-assistenciais privados;
• co-financiamento;
• fixação de limites de gastos com saúde no orçamento;
davam na conjuntura em que, no Brasil, o governo voltava à carga na “reforma” da “reforma” do sistema
previdenciário, vindo de novo à tona, o déficit do mesmo, ressuscitando-se, entre outros instrumentos
para superá-lo, a continuidade de contribuição de funcionários públicos já aposentados, proposta por diversas
vezes rejeitada no Congresso Nacional, no governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso
(Anônimo, 2003).
• adoção de alternativas menos dispendiosas que a hospitalização;
• privilégio de medidas de promoção da saúde e prevenção de doenças;
• tentativas de influenciar nas decisões dos médicos que impliquem em
autorização para incrementam gastos;
• redução do número de leitos ou de médicos;
• imposição de limites ao uso de novas tecnologias; e
• controle de preços dos medicamentos.
No caso brasileiro, com maior ou menor grau de efetividade, há uma
longa tradição nas iniciativas de parte do Estado em controlar o preço final
na rede varejista, tendo, durante muito tempo, funcionado o Conselho
Interministerial de Preços (CIP).
Nos últimos anos, tem-se observado um embate renhido entre
laboratórios e governo, em grande medida vencido pelos primeiros. Ora
argumentando com o incremento de custos na importação de matéria-prima,
devido, sobretudo, às alterações cambiais elevando a cotação do dólar, ora
alegando defasagem dos preços diante dos índices inflacionários, tem-se
verificado a concessão de reajustes freqüentes, como os acontecidos mais
recentemente: a partir de 1/3/03 foi dado um reajuste médio de 8,63% (os
fabricantes demandavam aumento de 18%), sendo que, duas semanas antes,
260 medicamentos tiveram seus preços completamente liberados nas farmácias
(Sofia, 2003). Em novembro de 2002, o governo Fernando Henrique
Cardoso havia autorizado um reajuste que precede aquele comentado antes,
com aumento médio também da ordem de 8,63%. Os preços tinham estado
congelados desde janeiro de 2001. Em agosto de 2000, houve um acordo
com a indústria para evitar aumentos. Em dezembro do referido ano, uma
medida provisória determinou o congelamento. Novo aumento, da ordem de
2%, para 8.640 produtos tidos como essenciais, foi autorizado a partir
de agosto de 2003, determinando-se que daí em diante haveria um reajuste
anual, em 31 de março, tendo como parâmetro o Índice de Preços ao
Consumidor Ampliado (IPCA), os ganhos de produtividade das empresas e
o nível de monopólio dos produtos no mercado. Saliente-se que continuam
excluídos das políticas de reajuste os 260 medicamentos que, em fevereiro,
tal como nos referimos acima, tiveram seu preço liberado (agora, passaram
a ter o mesmo tratamento, os produtos homeopáticos e os fitoterápicos). Foi
criada uma ouvidoria que terá como atribuição informar os consumidores e
prescritores sobre a variação de preços de produtos com idêntica fórmula
(Athias, 2003).
Os controles sobre os preços dos medicamentos podem trazer como
subproduto negativo o incentivo à comercialização de produtos não-inovadores.
Na tentativa de contornar a regulamentação, crescentemente
mais estrita sobre os produtos antigos, ou a competição existente entre os
fármacos que tiveram sua patente vencida, as empresas passam a lançar novos
produtos que se enquadram, majoritariamente, na categoria de me toos.
No setor farmacêutico, a situação é, pois, bastante polêmica. Por um
lado, existe um evidente incremento dos gastos, absorvendo fração importante
do orçamento sanitário global (levantamento feito pela Organization
for Economic Cooperation and Development (OCDE) constatou que os
países-membros gastavam, em 1996, em medicamentos, em média, 15,4%
dos seus orçamentos sanitários; esses números, mesmo que inalterados desde
1990, apresentaram uma variação entre os países da ordem de 7,6% a 28,9%
com taxas mais altas nos países com menores níveis de renda) (Henry, 2002).
A porcentagem de gastos com medicamentos, segundo o grau de desenvolvimento
dos países, é apresentada no Gráfico 5. Dados disponíveis indicam
que os medicamentos constituem o item de despesa familiar62 mais importante
nos países subdesenvolvidos e o segundo no orçamento sanitário público.
62 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam que a despesa familiar com
medicamentos no Brasil, nas famílias com renda de entre um e quatro salários mínimos (isto é, entre
80 dólares e 320 dólares), passa de 2,25%, em 1987, para 3,55%, em 1996, sendo que, nos grupos de
mais baixa renda, o componente ‘medicamentos’, representava entre 50% e 75% dos gastos no item ‘saúde’, ao passo que a proporção é oito vezes menor, nos grupos de renda alta.
Gráfico 5 – Gasto com medicamentos em relação aos gastos totais
Fonte: WHO (www.who.org).
Parece, por outro lado, tarefa difícil atuar sobre a tendência atual de
destinação de gastos farmacêuticos, nos níveis apontados, sem aplicar medidas
restritivas sobre os preços ou impondo o co-financiamento. No entanto,
interessa igualmente aos governos ampliar as taxas de emprego, assim como
as exportações, para o que importa estimular a fabricação e desenvolvimento
de fármacos inovadores. Ressalta Mossialos que, no âmbito da UE, a maior
fração dos trabalhadores do setor concentra-se em pequenas e médias
empresas, impossibilitadas de custear os altos investimentos requeridos ao
desenvolvimento de novos produtos que ocupem fatias importantes do
mercado, sendo poucas as empresas que podem dispor de capacidade
financeira comparável a muitas empresas dos EUA para dar conta do capital
que hoje é demandado para a P & D farmacêuticos (Mossialos, 1997).63
Cumpre, de todo modo, lembrar que têm sido observadas diferenças
de preços difíceis de explicar para um mesmo princípio ativo – até mesmo
63 É fato incontestável o grau de concentração do setor farmacêutico, dominado por grandes empresas
situadas em países desenvolvidos. No que concerne às patentes, por exemplo, verifica-se que os fármacos
inovadores surgidos entre 1955 e 1989, em quase 92% dos casos, concentravam-se em apenas 16 dos
95 países que, à época das mencionadas inovações, respeitavam patentes.
produzida pela mesma empresa – o que é exemplificado no Quadro 10, com
respeito ao fluconazol (mais compreensível, certamente, é a diferença
encontrada entre o ‘nome de marca’ e o ‘genérico’, produzido pela Cipla,
indiana).
Quadro 10 – Diferença de preço do fluconazol em diferentes países (cápsulas de
200 mg/julho de 2000)
Fabricante |
País de Distribuição |
Preço por unidade (dólar) |
Biolab (Tailândia) | Tailândia |
0,29 |
Cipla (Índia) | Índia |
0,64 |
Pfizer | Tailândia |
6,20 |
Vita (Espanha) | Espanha |
6,29 |
Pfizer | África do Sul |
8,25 |
Pfizer | Quênia |
10,50 |
Pfizer | Espanha |
10,57 |
Pfizer | EUA |
12,20 |
Pfizer | Guatemala |
27,60 |
Fonte: www.pharmabusiness.com.
As reformas ocorridas no setor saúde, implementadas no Brasil e em
diferentes países da América Latina, seguindo a receita neoliberal,64 com
o privilégio outorgado ao mercado e a privatização que lhes é inerente,
necessariamente acarretaram repercussões nos diferentes componentes
da política de medicamentos, uma vez que estas constituem segmentos
inseparáveis das políticas sociais e do modelo político-econômico pelo qual
se orientem as sociedades.
No caso brasileiro, mesmo considerando a persistência dos princípios
e diretrizes que conformaram a Reforma Sanitária e que foram inscritos no
64 Em diversos países do subcontinente, além do Brasil, foram implementados programas econômicos
caracterizados pela redução significativa das barreiras ao comércio exterior, cortes nos gastos públicos
reforma tributária, desvalorização cambial, privatização de empresas públicas. Nesse contexto e, particularmente,
no que respeita às repercussões desses programas no setor saúde, o tema volta a ser
discutido ao longo do presente texto, a exemplo do subitem 1.6.
texto constitucional de 1988 (universalização, regionalização, descentralização,
participação comunitária, institucionalização de um sistema único de
saúde), o impacto da submissão à orientação neoliberal reflete-se na consolidação
e ampliação do setor privado, na organização e prestação de serviços,
mesmo que se tenha outorgado, juridicamente, aos serviços privados um
estatuto de ‘complemento’ aos ‘serviços públicos’. Um exemplo, entre tantos,
pode ser dado com a ampliação significativa da cobertura por meio de
planos pré-pagos de saúde, que tiveram adesão massiva da classe média,
motivada pela precariedade qualitativa e quantitativa da assistência médicosanitária
oficial a que todos, teoricamente, têm direito.
No âmbito da assistência farmacêutica, o consumo supérfluo, para
muitos, faz-se acompanhar da ausência parcial ou absoluta de acesso, para a
maioria, até mesmo dos medicamentos essenciais. No caso específico do
Brasil, inquérito realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
(Idec) confirma a não disponibilidade de medicamentos básicos para doenças
e problemas mais simples e com custo relativamente baixo para tratá-los,
como hipotireoidismo, diabetes e piolhos. O estudo sobre o acesso a remédios
essenciais, feito em 11 municípios entre março e setembro de 2002,
mostrava que, em todas as 50 unidades de saúde visitadas faltava, pelo
menos, um dos 61 remédios pesquisados.65 Os itens avaliados foram
selecionados tendo por referência os fármacos que compõem a Rename.
A disponibilidade desses remédios, segundo o levantamento mencionado,
em média, era de apenas 55,4% (Idec, 2002).
As iniciativas, mesmo que de todo louváveis, como as do programa da
farmácia básica, que se propôs a tornar disponível um conjunto de 40
medicamentos66 ou do programa de genéricos (vide subitem 6.10) que,
iniciado em 1999, nesse primeiro quadriênio de seu funcionamento já
disponibiliza nas farmácias um montante de mais de 600 produtos a preços
menores que seus competidores de marca, perde muito do seu impacto
65 A amostra dos 61 fármacos selecionados é representativa dos principais grupos terapêuticos incluídos na Rename
(que, no total, conta com 327 fármacos) e contempla o “elenco mínimo” dessa lista – rol de 19 drogas que
obrigatoriamente deveriam estar disponíveis, o que ocorria, segundo a pesquisa, no entanto, somente em relação
a 72,5% dos remédios do mencionado elenco.
66 Segundo norma em vigor, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), para a aquisição de remédios do “elenco mínimo” (rol obrigatório), o município investe R$ 0,50 por pessoa/ano, os Estados entram com mais
R$ 0,50, no mínimo, e o governo federal, por meio do Ministério da Saúde, com R$ 1,00.
quando se considera o poder aquisitivo da maioria.67 Persistem, pois, problemas
graves em relação à distribuição e comercialização, ainda que não possa
ser omitido o passo importante representado pela definição de uma política
orientada para o uso racional, com algumas medidas já implementadas,
cabendo destacar a revisão efetuada na Rename, passados 15 anos de revisão
anterior, a elaboração de um Formulário Terapêutico Nacional e a institucionalização
da Anvisa e de um sistema de farmacovigilância.
No que tange ao mercado farmacêutico brasileiro, o maior da América
Latina, estando situado entre os dez maiores do mundo, em que pese o grave
problema de acesso para a maioria, esse mercado sempre se pautou pela
lógica capitalista de mercado, devendo-se ressaltar o domínio quase absoluto
dos laboratórios privados, com hegemonia das empresas transnacionais,
tanto na participação das vendas, quanto na origem das matérias-primas.