Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
INTRODUÇÃO: Papel assumido pelos medicamentos e alguns dos seus determinantes
Especialmente quando foi possível dar início ao progressivo avanço
tecnológico que propiciou sua quimiosíntese industrial, intensificado,
sobretudo, a partir da segunda guerra mundial e desde os seus primórdios
subordinado à lógica de mercado, os medicamentos foram sendo utilizados
de uma forma tal que, em grande medida, passaram a corresponder menos
aos propósitos sanitários que aos da crença desmedida e acrítica nos
seus poderes, prática que terminou por reforçar uma verdadeira “cultura da
pílula”, dominante na sociedade moderna.
O questionamento a que cumpre dar realce é se, de fato, os medicamentos
se constituem em instrumentos que oferecem, sempre, resultados
positivos, cumprindo as promessas e/ou esperanças neles depositadas ou se,
na verdade, uma série de outros condicionantes são indispensáveis para que,
tanto no plano individual, como no coletivo, níveis desejáveis ou elevados de
saúde venham a ser alcançados (Laporte, 1993). Não se pode, igualmente,
obscurecer o fato de que muitas novidades não passam de reintrodução de
fármacos preexistentes os quais passaram por alterações superficiais na sua
fórmula e/ou embalagem (Barros, 1988).
O papel dos medicamentos, em razão das práticas abusivas em relação
aos mesmos, tornou-se bastante controvertido (Tognoni, 1998). Uma gama
complexa de fatores interfere para que se possam produzir percalços no
1.
tratamento tal como ressalta editorial recente do British Medical Journal
(BMJ), que efetua uma síntese e uma avaliação críticas das variáveis em jogo
na cadeia terapêutica e suas falhas (Figueras, 2003).
Adicionalmente, vale lembrar que, na trajetória evolutiva da medicina
moderna, foi se consolidando uma forma de visualizar e intervir no processo
saúde e doença que privilegia uma abordagem mecanicista e reducionista
sobre o que mais adiante teceremos maiores comentários. Como decorrência,
paralelamente ao avanço das ciências biomédicas, foi sendo relegada a um
segundo plano, quando não completamente abandonada, a visão do todo que é o homem, esse complexo de componentes biológicos, emocionais e sociais,
sem cuja compreensão, torna-se impossível atuar eficazmente, se o propósito
a ser alcançado é um bom nível de saúde, a cura plena das doenças ou o alívio
efetivo dos sintomas (Barros, 1984; Barros, 2002b).
As estratégias de mercadização adotadas pelos produtores assumem
tanto formas consagradas de influência sobre prescritores e consumidores,
como meios sofisticados, associados às recentes tecnologias da comunicação.
Em texto anterior, aludimos às antigas e às novas artimanhas da indústria
farmacêutica, realçando o papel da internet até como agente de venda livre,
mesmo de produtos que requerem prescrição (Barros, 1995).
Um estímulo importante para a consolidação de comportamentos
e valores que distorcem o efetivo papel dos medicamentos e atua favoravelmente
no propósito de ampliar a demanda, além da publicidade direta ao
consumidor (tema que é aprofundado no item 1.4), provém de matérias
veiculadas na grande imprensa1 e que terminam induzindo o leitor ao
consumo independente da prescrição (automedicação), assim como à
hipervalorização da tecnologia médica (vide item 1.5) (Cabral Nascimento,
2003).
Não há como negar os benefícios resultantes da pesquisa e do
desenvolvimento (P & D) de múltiplos fármacos ou de recentes avanços, por
1 Exaustiva e interessante avaliação desse tipo de material, inserido em veículos de grande penetração no público
brasileiro concluiu que parte significativa das reportagens veiculava publicidade travestida de jornalismo, utilizando-
se de dados científicos, mesclados com misticismo, metáforas, alegorias e imagens como estratégia mais
que nada, comercial, ou seja, nas palavras da própria autora do trabalho, “com a articulação da autoridade moral
da ciência a contextos simbólicos socialmente construídos...o discurso veiculado alcança migrar da condição de
um simples produto para o de produtor de crenças, valores, desejos e padrões coletivos de procedimento”
(Cabral Nascimento, 2003).
exemplo, no campo da psicofarmacologia introduzindo agentes mais
potentes e dotados de menor capacidade de provocar efeitos adversos,
minimizando os prejuízos pessoais e/ou sociais decorrentes dos transtornos
mentais. Apesar desse reconhecimento, não se pode obscurecer a intromissão
dos interesses em jogo e que atuam no sentido de ampliar essas eventuais
conquistas, por vezes, para além do razoável.
Intervenções terapêuticas equivocadas, no entanto, seja no caso dos
psicofármacos, seja em tantas outras aéreas, são bastante freqüentes, até
mesmo em virtude do enfoque reducionista ou iatromecânico. A título de
ilustração, pode ser citado o caso das depressões, nas quais a despeito de sua
grande prevalência (quarto maior problema de saúde pública, segundo a
Organização Mundial de Saúde (OMS), mais de 40% dos seus portadores
não procuram ajuda médica. E, entre os que a procuram apenas um quarto
chega a um psiquiatra, sendo conhecido o fato de que a preferência dos
clínicos recai sobre a prescrição de ansiolíticos, conseqüente ao diagnóstico
mais óbvio de ‘transtorno de ansiedade’. Este, ainda que podendo fazer parte
dos quadros depressivos, ao constituir-se em sintoma a que se outorga mais
atenção, contribui para cronificar o quadro, dificultando o tratamento e
piorando o prognóstico (Bueno & Mattos, 2001). Na Espanha, na década
1985-1994, o consumo total de antidepressivos sofreu um aumento da
ordem de 247%. Os ISRS (inibidores seletivos de recaptação da serotonina),
particularmente, modificaram, substancialmente o padrão de uso dos
antidepressivos, sendo responsáveis por 71% do incremento total de antidepressivos
monofármacos observado no país (Alonso, 1997)2.
São numerosos os estudos realizados que evidenciam, pelas razões as
mais diversas e com múltiplas conseqüências de ordem econômico-sanitária,
a irracionalidade no uso dos medicamentos. Entre outros determinantes,
de fato agindo sinergicamente, subjacentes ao fenômeno mencionado,
poderíamos realçar os seguintes:
2 Estudos vindos à luz em meados de 2003, incriminavam os ISRS à base de cloridrato de paroxetina como potencialmente
capazes de induzir adolescentes ao suicídio, o que fez com que agências reguladoras dos EUA e do
Reino Unido emitissem alertas sobre a segurança dos produtos em questão, ainda que os que defendem o seu
uso argumentem que o emprego massivo por milhões de indivíduos, incluindo adolescentes e crianças, desde o
começo da década 90, teriam prevenido suicídios, mais do que aqueles que os novos estudos sugeririam terem
sido causados por essa classe de antidepressivos (Harris, 2003).
• Ausência de regulamentação ou do cumprimento da mesma, quando ela
existe, no que respeita aos processos de autorização de novos produtos.
• Inexistência de mecanismos de controle mais rígidos em relação às
práticas de comercialização e dispensação dominantes, mesmo quando
já há disponível legislação adequada.
• Lugar privilegiado crescentemente ocupado pelos medicamentos,
tanto no interior dos serviços de saúde, quanto na prática de profissionais
e usuários. Esse destaque guarda relação com componentes
simbólicos que associam os fármacos a resultados que ultrapassam suas
potencialidades em termos farmacotécnicos3.
• Publicidade massiva, por parte dos produtores, utilizando as mais
diversificadas e sofisticadas estratégias, com altos investimentos nas
mesmas e que terminam sendo custeadas pelos consumidores,
sem que, em contrapartida, haja disponibilidade de outras fontes
de informação, particularmente para os responsáveis pela prescrição.
As farmácias têm um lugar importante, entre os elos que integram a
cadeia de produção e utilização dos medicamentos, agentes que intermediam
a dispensação e comercialização (Vide Figura 1), tendo, infelizmente, se
transformado menos em órgãos a serviço da saúde que estabelecimentos
comerciais. Neste contexto, os balconistas de farmácia continuam a desempenhar,
no Brasil, e em muitos outros países, o papel de prescritores atuando,
assim, de forma importante para favorecer o incremento do uso inadequado
dos medicamentos, para o que contribui, igualmente, a persistência de todo
um conjunto de determinantes que fazem a população optar pelos medicamentos
como fonte de saúde e pela farmácia como substituto dos serviços
3 O texto de Dupuy & Karsenty (1980) e, entre nós, o de Lefèvre (1991) discutem o tema de forma muito
enriquecedora para a compreensão das funções extratécnicas que passaram a ser desempenhadas pelos medicamentos.
No que diz respeito ao amplo conjunto de fatores em jogo na consecução do desejável uso racional de
medicamentos, uma excelente síntese pode ser encontrada na publicação da Sobravime (2001), O que é uso
racional de medicamentos? A partir de texto original elaborado pela “Acción Internacional para la Salud”
(AIS/LAC), o mesmo foi, em grande medida, ampliado por iniciativa, louvável em todos os sentidos, dos
editores locais.
de saúde e do médico (Barros, 1997). A observância de dispositivos legais –
como o que estabelece a atuação do profissional farmacêutico nos
estabelecimentos que despendam e comercializem medicamentos – há
muito existentes, de certo poderiam contribuir para minimizar os malefícios
decorrentes da forma como atuam as farmácias, mais que nada, postos de
vendas da ‘mercadoria’ medicamento.
Figura 1 – Principais elos constitutivos da cadeia de utilização dos medicamentos
No âmbito das farmácias, a partir de diferentes estímulos de que são
alvo, os consumidores são induzidos a uma ampla aquisição e crescente uso
de qualquer tipo de medicamento através da automedicação. Mesmo com a
influência marcante de receitas prévias que se multiplicam, constata-se a
venda livre de vasta gama de medicamentos, para o que se faz presente, em
grande medida, a atuação prescritora dos próprios balconistas sem desconsiderar,
ademais, a elevada proporção da oferta e consumo final classificada
como sendo ‘automedicação’.