Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
Genéricos – instrumento de ampliação de acesso x conflitos de interesse no mercado internacional
As especialidades farmacêuticas passíveis de serem comercializadas
após o pertinente registro e autorização das agências reguladoras podem,
como no caso brasileiro, e em outros países, assumir diferentes formas, tal
como explicita-se no Quadro 16. Os ‘genéricos’ caracterizam-se como sendo
especialidades farmacêuticas que têm o mesmo princípio ativo com idêntica
fórmula e as mesmas características farmacocinéticas, farmacodinâmicas e
farmacotécnicas que as existentes em outro medicamento tomado como
referência legal, designado, habitualmente, como ‘inovador’. Entende-se por
85 A Sobravime foi fundada em 1991 e vem, desde então, realizando uma série de atividades, seja de pressão sobre
autoridades sanitárias, denúncias a práticas abusivas da indústria farmacêutica, elaboração de estudos e disseminação
de material educativo, no que se inclui uma série de livros sobre temas relativos à Farmacoepidemiologia
(vide Apêndice).
86 O Gpuim foi criado em 1990, vinculado, desde seu início, ao Departamento de Farmácia da Universidade Federal
do Ceará. Entre suas múltiplas atividades destacam-se a elaboração e difusão de material educativo sobre o uso
adequado dos medicamentos, destinado ao grande público, e o trabalho pioneiro no âmbito da farmacovigilância
no Brasil.
nome genérico a denominação que identifica a substância ativa e que pode
sofrer algum grau de variação conforme cada país, ainda que, via de regra, se
utilize, como parâmetro, a DCI.
Quadro 16 – Características dos ‘genéricos’ versus outras especialidades
farmacêuticas
(1) Deve atender às exigências específicas da autoridade sanitária.
(2) Poderia ser tido como medicamento genérico desde que apresente provas de bioequivalência e biodisponibilidade
e dê entrada à solicitação de registro pertinente na agência reguladora.
Superada a vigência da patente, constata-se que, já a partir da década
de 50 os fabricantes dos genéricos passam a disponibilizar, sob a forma
mencionada, uma gama mais ampla de fármacos resultantes da revolução
farmacológica ocorrida nas décadas anteriores, a exemplo das sulfamidas,
penicilina, alguns agentes psicoativos, diuréticos tiazídicos. Por essa época, a
indústria produtora de fármacos inovadores87 vivia o auge – a chamada ‘idade
de ouro’ na história desse ramo industrial – por terem seus produtos atingido
o ponto mais elevado do seu potencial de vendas, com sucedâneos mais
promissores chegando continuamente ao mercado, generalizando-se a
aceitação como rotina de uma renovação ininterrupta no campo farmacêutico,
para o que uma economia em expansão, na época, podia dar cobertura
(Dukes, 1997). Mudanças substantivas no quadro apontado vão ocorrer a
87 Considera-se como “inovador” ou “original”, o medicamento que contém princípio ativo inédito, fruto da P & D,
em todas as suas etapas, desde a síntese química básica, até sua utilização clínica e que, ao final, é comercializado
pelo laboratório proprietário da patente, sob um nome de marca registrada.
partir de meados da década de 70 e que, segundo Taylor (1992), teriam as
seguintes razões básicas, interdependentes:
• houve uma aceleração no ritmo de perda da validade das patentes. Em
1990, nos EUA, 60% dos 200 produtos mais receitados haviam
perdido sua cobertura patentária; em 1994, essa proporção chegava
aos 90%;
• houve uma interrupção importante no ritmo das inovações significativas.
Em muitas das categorias terapêuticas (cefolosporinas, benzodiazepínicos,
tiazidas) parecia ter-se chegado a explorar o máximo de suas potencialidades.
Começa-se a pôr em questão a suposição, quase automática,
então dominante, de que os novos medicamentos eram sempre
melhores e podiam usufruir, justificadamente, de um preço final
superior aos genéricos;
• acentuando mais ainda as suscetibilidades das empresas inovadoras em
relação às produtoras de genéricos, passa a haver uma regulamentação
cada vez mais exigente, na maior parte dos países, com conseqüências
no incremento dos custos em P & D de novos produtos;
• a desaceleração econômica ocorrida no mundo ocidental acarreta a
necessidade de redução nos gastos sanitários, tendo o controle das
despesas farmacêuticas transformado-se em um dos objetivos básicos
das reformas que vão sendo implementadas e, nesse contexto, os
‘genéricos’ assumem papel importante em virtude do seu menor preço;
• grupos populacionais em inúmeros países subdesenvolvidos passam
a participar do mercado do consumo de medicamentos graças aos
programas de medicamentos essenciais, com a entrada de produtos
com preços mais acessíveis, isso é, ‘genéricos’; e
• consolida-se a estrutura de uma indústria produtora de ‘genéricos’ que,
igualmente, passa a crescer no seio dos países socialistas, no sudeste
da Ásia e Pacífico Ocidental. O êxito alcançado e a necessidade de
competir com as mesmas armas terminaram por levar empresas
inovadoras a produzirem, também, ‘genéricos’, seja adaptando sua
própria estrutura produtiva, seja comprando empresas que fabricavam ‘genéricos’.
Na atualidade, a aceitação dos ‘genéricos’ está consolidada em
inúmeros países. Ainda que nos casos da Espanha e Itália88 programas ou
estratégias de incentivo ao uso dos genéricos sejam bem mais limitados (no
segundo dos mencionados países, muito recentemente, foram tomadas
algumas iniciativas ainda incipientes), em outros países europeus (casos do
Reino Unido, Alemanha e Países Baixos) e, sobretudo, nos EUA, a partir da
década de 80, houve um crescimento deveras significativo da participação
dos ‘genéricos’ no mercado, inclusive a partir da eleição desses produtos por
parte dos médicos, quando da prescrição.
Em 1984, regulamentação emanada do Congresso dos EUA, simplifica
o registro de ‘genéricos’ e contempla outros incentivos para incrementar o
uso dos mesmos, incluindo reforço à norma anterior, do início dos anos 70,
que autorizava a substituição pelo farmacêutico de um produto de marca por
um ‘genérico’. Nesse mesmo país, os programas assistenciais públicos,
Medicare e Medicaid, além de sistemas de reembolso por empresas de seguro,
também representaram um reforço ao uso de ‘genéricos’. Da sugestão até a
obrigatoriedade de permuta na farmácia por um equivalente de menor custo
em lugar do medicamento prescrito, nota-se que ocorreram diversas fases e
que, sintetizadas por Jonathan Quick, são reproduzidas no Quadro 17.
Estimava-se que, no final do século 20, esses medicamentos ocupariam
50% das prescrições médicas e que a venda dos mesmos viesse a representar
21% do mercado farmacêutico mundial. O fato é que, já em 1993, os
88 A importância claramente menor dos ‘genéricos’ nesse país, assim como na França, deve-se à política de preços
mais estrita para com as especialidades farmacêuticas de marca, o que gerava menor impacto nos benefícios que
resultariam da prescrição de ‘genéricos’ (Dukes, 1995). Na Espanha, em fins de 2002, campanha publicitária
institucional, utilizando a mídia, folhetos e outdoors, proclamava terem os ‘genéricos’ “igual eficácia, igual
qualidade, menor preço” (vide Apêndice). A campanha também se propunha a incidir sobre os preços de
referência, valor máximo que o sistema financia para alguns grupos de medicamentos em que existem ‘genéricos’.
Nessas situações, o farmacêutico informa ao cliente que deseja adquirir um medicamento receitado, para o qual
existe um equivalente genérico, que, ao optar pelo produto de marca, deverá arcar com a diferença. Pretende o
Ministério, na verdade, enfrentar três desafios: incrementar o número de genéricos disponíveis; estimular os
médicos a receitarem ‘genéricos’; conseguir a confiança dos pacientes para os mencionados produtos.
medicamentos genéricos ocupavam nada menos de 35%, 30% e 13% nos
mercados da Alemanha, EUA e França, respectivamente, sendo que os dados
mais recentes para os EUA apontam para níveis que alcançam cerca de 50%
da fração ocupada pelos produtos genéricos no total de vendas daquele país
(Cadime, apud Bermudez, 1999).89 Há estimativas de que 13,7% das vendas
globais do setor farmacêutico (mais ou menos 46 bilhões de dólares) estão
relacionadas a produtos que perderão a patente entre 2001-2005. Sabe-se,
hoje, que, para continuar crescendo e para competir com os genéricos, as
empresas líderes teriam de gerar de três a cinco novas entidades químicas a
cada ano, esperando-se um potencial de vendas que alcance a média de 350
milhões de dólares/ano, aproximando-se dos chamados block-buster (aqueles
produtos que atingem marcas anuais de vendas da ordem de 500 milhões de
dólares) (Anônimo, 2003j).
No caso espanhol, onde os genéricos praticamente não existiam antes
de 1998, mesmo com dados divergentes, conforme a fonte, o fato é que a
participação desses produtos é, ainda, insignificante, inclusive se compara
com a média para o resto da Europa (entre 10% e 20%): 3,4% do mercado
farmacêutico global, segundo a Asociación Española de Fabricantes de
Sustancias y Especialidades Farmacéuticas Genéricas (Aeseg) (Anônimo,
2002b), ou 6,65% (até maio/2002), segundo o Ministerio de Sanidad y
Consumo (Anônimo, 2002a). Para a Aeseg, as medidas até agora tomadas
para impulsionar o consumo de ‘genéricos’ na Espanha foram um evidente
fracasso.90 Em entrevista recente, o diretor geral da Aeseg (que reúne 18
laboratórios que dão conta de 50% da cota de mercado de genéricos no país)
comenta ter apresentado dez propostas ao governo para dinamizar o setor
de genéricos que estaria estagnado e que se resumiriam em três grandes
objetivos: facilitar a chegada ao mercado de novos produtos; estimular a
89 Dados adicionais sobre mercado de genéricos são apresentados no Apêndice.
90 A Aeseg refere-se, como uma das medidas não efetivas, ao duplo preço de referência, estabelecido em algumas
comunidades autônomas (divisão geopolítica do Estado espanhol) pelo qual o farmacêutico compromete-se a dispensar
o medicamento mais barato, sempre que a prescrição tenha sido feita com base no princípio ativo. O contra-
argumento é que receita com princípio ativo, não é sinônimo, necessariamente, de dispensação de ‘genéricos’ (Anônimo, 2002b).
A entidade mencionada decidiu tomar medidas legais contra a decisão das comunidades
autônomas de Andalucia, Extremadura e Madrid de estimular a prescrição com base nos princípios ativos, alegando
tratar-se de uma usurpação das competências do governo central e da capacidade soberana do médico para
prescrever o medicamento que considere oportuno (Anônimo, 2002c).
prescrição e dispensação; e favorecer o financiamento. A consecução desses
objetivos implicaria, entre outras medidas, em (Gómez, 2003):
• outorgar prioridade à autorização de genéricos, agilizando os trâmites
de concessão de preços e autorizando o uso experimental antes de
vencida a patente;
• incentivar a prescrição e dispensação no sistema público, por exemplo,
instituindo a colocação de um quadro com o lembrete “não efetuar
substituição nas receitas com genéricos”;
• restrição do uso da sigla TDL (tratamento de longa duração) para as
especialidades farmacêuticas genéricas; e
• dispensação sistemática de genéricos quando a prescrição tenha sido
feita com princípio ativo.
Quadro 17 – Fases da substituição da ‘especialidade de marca’ por ‘genérico’
Fonte: J.Quick, 1995 (apud Dukes, 1997).
A nova regulamentação advinda dos acordos feitos no âmbito da
OMC, em prol do livre comércio, poderia, eventualmente, estimular a
competição relacionada aos ‘genéricos’ e reduzir o preço dos medicamentos
não submetidos ao regime de patentes.91 Mais provavelmente, no entanto,
em virtude dos Acordos Adpic, o que pode vir a ocorrer é o atraso na introdução
de novos genéricos, o que estará na dependência da forma como venha
a ser elaborada e aplicada a regulamentação desses acordos em cada país,
devendo-se recordar a importância das salvaguardas previstas, a exemplo da ‘importação paralela’92 e, sobretudo, da ‘licença compulsória’93 (Correa, 1997;
OMS, 2001a). No Brasil, no início de 2004, o governo estava negociando
com o laboratório Merck Sharp & Dohme o licenciamento voluntário
para que laboratórios oficiais pudessem vir a produzir ‘efavirenz’, usado no
tratamento da Aids com a contrapartida do pagamento de royalties sobre
o preço de comercialização (Collucci, 2004).
Quando da crise econômica por que passaram os países onde se
implantaram sociedades de bem-estar, em especial sob a égide das socialdemocracias,
entre outras reformas, a ocorrida no setor saúde, passou a
considerar como um de seus objetivos, reduzir o gasto farmacêutico, passando
os medicamentos genéricos a representar o instrumento principal para
cumpri-lo (Lobo, 1992). Nesse momento, apreende-se a importância dos
genéricos pelo papel assumido na redução dos preços: a introdução do
91 Para citar um exemplo da redução de preços, o Instituto de Seguridade Social da Turquia, ao decidir adquirir ‘genéricos’, em lugar de produtos de marca, conseguiu, no exercício de 1993, obter uma diminuição da ordem de
45% nos gastos previstos com a compra de medicamentos (O’Brien, 1997). No caso do diferencial possível de
atingir-se nos preços finais, comparados com um equivalente de marca, cite-se o caso da ranitidina, lançada no
Brasil, no início de 2000 – cuja diferença para o seu principal concorrente de marca (Antak®), é da ordem de mais
de 100% (R$ 10,71 versus R$ 24,70) (para outros exemplos de marcantes diferenças entre um produto de marca
e seus equivalentes fabricados por um laboratório oficial, veja-se o Quadro 1 do Apêndice.)
92 Trata-se da importação, com preços mais acessíveis, sem o consentimento do titular da patente, de um produto
que desfruta, ainda, da mesma e é comercializado em outro país, seja pelo próprio titular da patente ou a
partir de sua autorização.
93 Instrumento normativo pelo qual uma autoridade governamental, com competência para tanto, concede uma
licença para uso de uma invenção, mesmo sem contar com o consentimento do titular da patente, a um terceiro
ou a uma instituição pública, sem que, no entanto, o titular da patente perca o direito sobre a mesma e deixe de
usufruir de uma remuneração adequada. Esse recurso tem sido utilizado, tanto para estimular a competição, como
para assegurar a disponibilidade de medicamentos necessários (OMS, 2001). Existe ainda a chamada “exceção
Bolar” por meio da qual se autoriza ao fabricante de medicamentos genéricos realizar todos os testes necessários
com vistas à aprovação do produto antes que caduque a patente do medicamento inovador, facilitando a entrada
do ‘genérico’ no mercado imediatamente depois de vencida a patente, sendo possível, inclusive, estocar o produto
seis meses antes de caducar a patente.
omeprazol na Austrália provocou uma redução de 43% no preço do Losec‚
em um período de dois anos; nada menos que 97% foi a redução alcançada
na combinação de fármacos anti-retrovirais após a comercialização dos
genéricos equivalentes por empresas indianas (Henry, 2002). A esse respeito,
veja-se a diferença de custo final encontrada na terapia com três anti-retrovirais
explicitada no Gráfico 10. O programa brasileiro de DST e Aids, após
quase um ano de negociações, no início de 2004, obteve êxito na tentativa
de redução (da ordem de cerca de 37% das despesas totais com a aquisição
de anti-retrovirais usados no tratamento de 148.500 pacientes. Entre os
mecanismos de pressão adotados pelo Ministério da Saúde encontravam-se a
ameaça do uso da ‘licença compulsória’ (Collucci, 2004).
Em termos globais, diferentes estimativas realizadas indicam que, para
cada 1% de consumo que venha a corresponder à dispensação de medicamentos
genéricos, seria possível obter una economia da ordem de 0,2% a
0,6% dos gastos farmacêuticos, dependendo, naturalmente, do nível de
preços existente em cada país (García, 2003).
Não pairam dúvidas quanto ao fato de que a prescrição e dispensação
de medicamentos genéricos acarreta pontos positivos na eficiência do sistema
público de saúde pelo simples fato de poder produzir diminuição de gastos
sem perda de qualidade, nem tampouco interferindo na liberdade de
prescrição.
Gráfico 10 – Diferença de preços na triterapia para a Aids: (estavudina (d4T) +
lamivudina (3TC) + nevirapina)
Fonte: OMS, 2002.
Segundo García, as medidas que podem ser tomadas com o intuito de
modificar os hábitos de prescrição podem ser agrupadas em administrativas
e educativas. Quando existem efeitos das medidas administrativas esses são
mais ou menos imediatos, mas de curta duração. Já as medidas educativas
produzem efeitos mais lentos, porém gozam de mais consistência (García,
2003). Pelo fato de demorarem mais a apresentar seus efeitos, as medidas
educativas, segundo o autor, tornam-se menos atraentes para políticos e
gestores sanitários que buscam efeitos imediatos.