Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
Como a EMEA poderia, de fato, atender aos interesses da saúde pública
Antes, cabe questionar a localização da Emea no seio dos organismos
comunitários e seus mecanismos de financiamento. Se as ações precípuas da
Agência de fato hão de orientar-se, como em teoria se proclama, como
devendo “... promover a proteção da saúde, através do fornecimento de
medicamentos seguros e efetivos” ou “melhorar a informação para
profissionais e pacientes quanto ao uso correto dos produtos de natureza
medicinal”, como explicar, então, que, institucionalmente, ela esteja
localizada em um organismo industrial da CE (o General Directorate of
Enterprises) e não naquele relacionado à saúde pública? Essa localização
guarda coerência – aí, sim ... – com outros dos objetivos explícitos da
EMEA, qual seja “facilitar o livre movimento dos produtos farmacêuticos
no seio da comunidade”. Por outro lado, o orçamento da entidade, hoje,
provém de um subsídio da UE e, em proporção bem mais significativa, das
taxas pagas pela indústria farmacêutica, no que, aliás, a agência compete com
os organismos reguladores nacionais, competição de todo descabida e cuja
solução passa, necessariamente, conforme comentamos mais adiante, pela
unificação dos sistemas de registro. Por outro lado, preocupa a limitação
de recursos humanos e financeiros da EMEA para implementar estudos
independentes sempre que haja dúvidas sobre dados incluídos nos pedidos
de autorização.
Em termos operacionais, é conflitante a sobrevivência de dois
processos para autorização de novos produtos. O sistema ‘descentralizado’
parece muito mais atender aos interesses do mercado livre de produtos.
O ‘reconhecimento mútuo’ poderia sobreviver, sugerem Garattini e Bertele
(2001) como mera alternativa metodológica, sendo a abolição do processo
descentralizado a via ideal para tornar mais uniforme a aprovação de
novos medicamentos. Ressalte-se que, na atualidade, a via centralizada é
voluntária, sendo compulsória apenas para os produtos de origem
biotecnológica (a nova proposta, ainda não de todo decidida e que depende,
como de praxe, de uma co-decisão da Comissão e do Parlamento, contempla
a submissão ao procedimento centralizado de todos os novos produtos,
sejam ou não biotecnológicos).
Atualmente, aos integrantes do CPMP compete decidir a respeito da
aprovação de um medicamento e, igualmente, julgar a pertinência dos
pedidos de reconsideração. Obviamente, nesse último caso, caberia esperar
que o julgamento ficasse a cargo de um grupo independente de expertos.
Vale, ainda, ressaltar que toda a documentação constitutiva das várias
fases do processo de avaliação, está disponível para a empresa, o que parece
constituir-se um grau de transparência que não se justifica. Cabe, sim, à
empresa ter acesso ao arrazoado que respaldou a decisão final tomada pelo
CPMP, mas não aos textos dos documentos previamente elaborados pelos
relatores. A transparência desejada – e, hoje, inexistente – seria, exatamente,
tornar públicos para os sistemas de saúde e para os pacientes, por exemplo,
os fundamentos das decisões do CPMP, sejam negativas, sejam positivas (no
caso das primeiras, concede-se duas semanas para que a empresa interessada
possa recorrer, sem divulgação alguma, do porquê da negativa). De igual
forma, caberia facilitar o acesso às razões da negativa final, particularmente
das opiniões de membros do Comitê que se opuseram a uma determinada
autorização, tal como procede a FDA.
Está previsto que, quando da recusa de um pedido de registro, a
mesma seria aplicável a todos os países-membros, norma que pode ser
contornada graças ao procedimento alternativo em vigor (o ‘reconhecimento
mútuo’). No caso do ‘procedimento centralizado’, requer-se duas etapas
de votação. Se a primeira delas é negativa, a empresa goza da faculdade
de retirar o pedido de registro (até dezembro de 2000, registraram-se tãosomente
quatro opiniões negativas e 49 pedidos retirados), cabendo ressaltar
que o conteúdo das solicitações retiradas é considerado confidencial, o que,
mais uma vez, denota falta da desejável ‘transparência’ (Anônimo, 2002e).
Tem-se proclamado enfaticamente – e a legislação em vigor o comprova – que os critérios-chave a serem considerados, quando do registro
de novos medicamentos, seriam a ‘qualidade’, a ‘eficácia’ e a ‘segurança’. No
entanto, tal como ressaltam Garattini e Bertele (2001), para a indústria, uma
vez que a ‘qualidade’ se demonstre “aceitável”, conte-se com indícios da ‘eficácia’, mesmo que não “demonstrada”, e a ‘segurança’ não tenha evidenciado
maiores “problemas”, qualquer produto deveria ser introduzido no mercado!
Outro aspecto merecedor de atenção reside no fato de que fármacos que
evidenciam melhor atuação que o placebo, não significa, necessariamente,
que sejam superiores a produtos preexistentes, devendo, pois, ser privilegiada,
nos ensaios clínicos, a comparação com outros fármacos mais do que com
placebos! Na verdade, persistir na aprovação de medicamentos, sem conhecer
até onde eles são melhores ou piores que os existentes pode levar à introdução
no mercado de produtos que são menos atuantes ou mais tóxicos, ou ambos
(Garattini e Bertele, 2002).
O fato é que vem se intensificando o debate sobre a crescente
dependência ou intromissão nas agências reguladoras dos interesses dos produtores.
Em uma primeira etapa, enfatiza-se a ineficiência e lentidão das
mencionadas agências – esse era o argumento levantado pela Association of
British Pharmaceutical Industry nos anos 80, agregando os prejuízos daí
advindos à economia do País. Nessa mesma época, o setor industrial sueco
e alemão igualmente pressionava em favor de mecanismos mais ágeis
na aprovação de novos medicamentos. Na verdade, essa pressão vem se
intensificando e está associada, mais recentemente, à competição entre
agências, acirrada a partir da institucionalização do ‘reconhecimento mútuo’,
em virtude da dependência econômica das taxas cobradas às empresas.
O Quadro 11 resume as etapas da crescente intromissão dos interesses da
indústria no seio das agências reguladoras.
Quadro 11 – Etapas da crescente influência da indústria farmacêutica sobre as
agências reguladoras
Fonte: Abraham, J (2002a).
A credibilidade das agências reguladoras é abalada com a insinuação de que a necessidade de
mais tempo para avaliação denota ineficiência.
As agências reguladoras tornam-se crescentemente dependentes do financiamento da indústria
para o seu funcionamento.
Permite-se que a indústria farmacêutica dite prioridades às agências, por exemplo, para diminuir
o tempo gasto na aprovação de novos produtos.
Criação de um ambiente, tal como o propiciado pelo ‘reconhecimento mútuo’, em que as
agências passam a competir entre si.