Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
As estratégias promocionais e o seu possível controle
Algumas iniciativas foram tomadas fora dos organismos reguladores
estatais com o propósito de orientar as atividades promocionais, na tentativa
de frear os seus excessos, eventualmente punindo transgressores. A própria
OMS, como parte de sua estratégia revisada em relação aos medicamentos,
por ocasião da assembléia geral de 1988, propôs um conjunto de diretrizes
éticas cujo propósito era o de apoiar e fomentar a melhora da assistência
sanitária pelo uso racional dos medicamentos. Critérios éticos sugeridos para
orientar as atividades promocionais do setor farmacêutico foram, nessa
mesma assembléia, aprovados e, posteriormente, revistos na assembléia
de 1994.
Define-se como ‘promoção’ todas as atividades informativas e de
persuasão realizadas pelos fabricantes e distribuidores com o objetivo de
induzir a prescrição, a dispensação, a aquisição e a utilização de um medicamento
(WHO, 1988b). Ainda que tenham sua importância, infelizmente as
resoluções como a mencionada e todas as oriundas do fórum máximo da
OMS têm um caráter propositivo e não compulsório, apesar de terem sido
aprovadas pelos representantes oficiais dos diferentes Estados-Membros.
Em mesas-redondas realizadas em 1997 e 1999 pela OMS, com a
participação de organizações não-governamentais, chegou-se à conclusão de
que a promoção inadequada dos medicamentos continuava sendo um
grave problema em todos os países. Tal como ressalta a diretora geral da
Organização, à época, em pronunciamento na 49ª Assembléia Mundial de
Saúde, “continua havendo um desequilíbrio entre a informação sobre
medicamentos produzida comercialmente e a informação sobre
medicamentos independente, comparativa, comprovada cientificamente
e atualizada, para os prescritores, os dispensadores e os consumidores”. Na
segunda das mesas-redondas antes referidas, foi decidido criar uma ampla
base de dados sobre promoção de medicamentos a partir de informações
a serem recebidas de organizações não-governamentais de todo o mundo
(www.drugpromo.info). A base de dados propõe-se subsidiar uma gama
variada de interessados, a exemplo de profissionais de saúde, associações
profissionais, pesquisadores universitários, organizações de consumidores e
outras organizações não-governamentais, agências reguladoras e a própria
indústria farmacêutica, que poderá avaliar as críticas formuladas a suas atividades
promocionais. Os objetivos do projeto, coordenado pela OMS e pela
HAI, eram os seguintes:
• documentar o volume de promoção inadequada nos países desenvolvidos
e em desenvolvimento;
• documentar os efeitos da promoção inadequada sobre a saúde;
• formular recomendações para as investigações que se fizerem
necessárias;
• proporcionar informação sobre os instrumentos que podem ser
utilizados para informar adequadamente aos profissionais de saúde
sobre a promoção;
• proporcionar instrumentos para monitorizar a promoção dos medicamentos;
• promover a formação de redes de grupos e pessoas interessadas
nos temas da ‘promoção’, proporcionando enlaces entre eles por meio
da web.
Ainda que se saiba que a promoção farmacêutica continuará existindo
como estratégia da indústria para manter e, preferentemente, ampliar suas
vendas, segundo Lexchin, responsável pelo projeto da base de dados,
nuestra tarea consiste en conocer y educar a los profesionales de la salud y
los consumidores acerca de las limitaciones de la promoción ética de
medicamentos como fuente de información sobre el tratamiento; en
determinar sus importantes posibilidades de daño cuando es inexacta,
inapropiada o sesgada y en determinar su potente influencia sobre los
prescriptores y usuarios (Lexchin, 2002).
No que concerne às iniciativas tomadas pela indústria farmacêutica, as
propostas de auto-regulamentação, desde a primeira versão do código,
aprovada pela International Federation of Pharmaceutical Manufacturers
Associations (IFPMA), em 1981, até a revisão, feita em 1994, vêm sendo
monitoradas por diferentes entidades de defesa dos interesses dos consumidores,
especialmente as que integram a Health Action International, com
destaque para o Healthy Skepticism,69 na Austrália, e o Bukopharma
Kampaign, na Alemanha. Todas as avaliações feitas são unânimes quanto à
ineficiência do autocontrole como instrumento para prevenir e punir a promoção
inadequada. De fato não existem estratégias de monitorização do
cumprimento do código pelas empresas afiliadas nem tão pouco estão previstas
sanções rígidas para as que violarem as regras auto-impostas (HAI,
1994).70
A disseminação, a cada dia mais massiva, de informações de natureza
médica pelos sites na Internet71 – incluindo-se entre elas as relacionadas aos
fármacos – e o caráter, com freqüência questionável, das mesmas têm merecido
a atenção de diferentes organizações, constituindo-se tema preocupante,
sobretudo, pelas dificuldades impostas para conseguir controles eficazes.
Já existem cerca de 16 organismos que atuam no sentido de certificar a
qualidade das webs médicas. Entre elas, podem ser mencionadas a American
Medical Association, o Colégio de Médicos de Barcelona e a Fundação
Health on the Net (HON). Essa última, estimulada pela ONU, criou em
1996, o HONCode, código de qualidade baseado nos seguintes critérios
(Sandoval, 2002):
69 Atuante, há quase duas décadas, e, de início, denominado Medical Lobby for Appropriate Marketing (MaLAM),
essa ONG visa utilizar a influência dos médicos para incentivar as empresas a fornecer informações
adequadas, científicas, facilitando a boa prescrição e uso dos medicamentos. Publicações e informações, em
geral de grande utilidade, estão acessíveis na página da web para a qual remetemos os leitores interessados
(www.healthyskepticism.org).
70 Exaustiva revisão crítica sobre algumas das iniciativas surgidas com o propósito de controlar as atividades
promocionais da indústria foi por nós realizada (Barros, 1995b).
71 Estima-se que as páginas da web versando sobre temas de saúde e/ou médicos cheguem à casa das cem mil
(Sandoval, 2002).
• a informação veiculada deve ser oferecida por profissional qualificado;
• transparência na informação quanto aos responsáveis pelo que é
veiculado, assim como com respeito aos patrocinadores;
• existência de documento que certifique a qualificação da instituição ou
pessoa responsável pelo site;
• confidencialidade do correio eletrônico;
• clareza quanto à fonte de financiamento; e
• oferta de informações atualizadas.
Ao mesmo tempo em que urge reconhecer que a praticidade e
amplitude da oferta de informações pode ser útil e ter impacto positivo na
vida das pessoas, existe o risco de tentativas de substituição do médico,
em vez de complemento da atuação do mesmo, quando não da troca da farmácia
quando da dispensação de medicamentos.
A regulamentação da Internet, enquanto veículo de informação e
ponto de vendas de medicamentos tem sido objeto de atenção de agências
reguladoras, como é o caso da FDA (o site www.fda.gov/oc/buyonline/
default.htm orienta sobre os riscos de compra de medicamentos na web), e
mereceu a atenção das Conferências Pan-Americanas de Harmonização.
Foi criado um grupo de trabalho específico sobre o tema, cujas recomendações,
apresentadas na Conferência mais recente, foram apresentadas no
item 2.3.6.
As tentativas de regulamentar a atuação dos propagandistas, não têm
tido êxito. Essa é opinião de Prescrire, revista que mantém, na França, uma
rede de vigilância das atividades do mencionado profissional e que chegou à
conclusão de que o mesmo continua fornecendo informações equivocadas a
respeito da inocuidade ou da eficácia dos medicamentos. Na avaliação,
realizada no período março de 2001 a março de 2002, constatou-se que
o problema mais grave dizia respeito às indicações (68% delas não se
ajustavam às fichas técnicas do produto) e, em apenas 10% dos casos,
explicitavam-se advertências – com igual proporção de referências aos efeitos
adversos – sobre riscos, sendo as interações mencionadas, tão somente, em
8% das visitas.72
A American Medical Association (AMA) formulou princípios éticos
em que se prevê a possibilidade dos médicos receberem donativos em
dinheiro, apenas de valor baixo (inferiores a 100 dólares). A Time-Concepts
LLC recebe de empresas farmacêuticas 100 dólares por cada acesso assegurado
de propagandistas a médicos, dos quais 50 são repassados a estes profissionais,
5 vão para uma instituição filantrópica indicada pelo médico e 45 ficam
com a empresa que realiza a intermediação. Ferindo, igualmente, as diretrizes
da AMA, um grupo de médicos de Cincinnati organizou uma empresa, a
Physician Access Management, que cobra dos propagandistas 65 dólares por
cada 10 minutos de visita (Spurgeon, 2002).
Questionário enviado a 1.714 General Practtioners (GP), obteve
resposta de 1.097 deles, na tentativa de apreender a associação entre os seus
hábitos de prescrição e a freqüência das visitas recebidas de propagandistas: a
conclusão foi a de que os que recebiam, pelo menos, uma visita semanal,
expressavam mais freqüentemente opinião que os levavam à prescrição
desnecessária, quando comparados com os que recebiam visitas menos
freqüentes (Watkins et al, 2003).
As autoridades sanitárias dos EUA, no início de maio de 2003,
enviaram carta às empresas farmacêuticas, chamando a atenção para as técnicas
publicitárias que elas estavam utilizando e que feriam a legislação em
vigor. Conforme notícia publicada no The New York Times, a advertência
fez-se acompanhar de um guia de orientação no qual se explica que nenhum
incentivo financeiro deve ser brindado a médicos, hospitais, empresas de
seguro ou farmácias com o propósito de estimular ou recompensar a prescrição
de determinados produtos. Os incentivos mencionados têm “alto
potencial de desembocar no abuso e na fraude”, segundo explicita o guia
elaborado por Janet Rehnquist, inspetora geral do Departamento de Saúde e
Serviços Humanos. A legislação federal norte-americana proíbe os
pagamentos dirigidos a gerar negócios por meio do Medicare ou do Medicaid,
72 Matéria publicada em Prescrire International, vol.10, nº 55, out. 2001 e citada em Nuevo informe sobre las
visitas de representantes de ventas franceses (Boletín de Medicamentos Esenciales, nº 31, 2002).
os programas federais de cobertura sanitária pública para 80 milhões de
pessoas, entre as quais se incluem idosos, portadores de deficiência e
indigentes. A lei proíbe práticas que são habituais em outras indústrias, conforme
declarou Rehnquist, que assegurou que estava especialmente preocupada
com as práticas comerciais que elevam os gastos federais, interferem
na tomada de decisões clínicas e podem ocasionar abusos na utilização dos
fármacos (Anônimo, 2003c).
As cifras astronômicas disponíveis de gastos com a promoção farmacêutica
já foram objeto de consideração em outros subitens deste documento.