Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
A farmacovigilância na UE
As limitações impostas pelos ensaios clínicos para detectar efeitos indesejáveis
dos fármacos, por mais aprimoradas que tenham sido, ao longo do
tempo, as estratégias para realização dos mesmos impuseram a necessidade de
acompanhar o comportamento dos medicamentos após sua entrada no mercado.
Neste momento, torna-se factível definir o perfil de segurança na medida
em que milhares de consumidores passam a utilizar os produtos, sem as
restrições que, habitualmente, impõem os protocolos experimentais.
Para o estudo sistemático das reações adversas39 pós-comercialização,
com o propósito de preveni-las ou detectá-las o mais precocemente possível,
estão disponíveis várias estratégias que constituem a ‘farmacovigilância’40:
• estudos de casos-controles
• estudos de coortes
• vigilância intensiva de pacientes hospitalizados
• notificação voluntária ou espontânea
38 Uma excelente revisão sobre o tema, englobando, tanto a farmacovigilância na UE, como na Espanha, encontra-
se em Nuevas perspectivas de la farmacovigilancia en España y en la Unión Europea, editado pelo Grupo
IFAS (grupo constituído de especialistas designados para compô-lo pela Indústria Farmacêutica e Autoridades
Sanitárias), 1998.
39 Segundo o Código comunitário sobre medicamentos para uso humano, em coincidência com a definição da
OMS, reação adversa vem a ser “qualquer resposta nociva e involuntária a um medicamento, produzida a partir
de doses aplicadas normalmente no homem para profilaxia, diagnóstico ou tratamento de enfermidades ou
para o restabelecimento, correção ou modificação de funções fisiológicas” (Diario Oficial da Comunidade
Européia, 2001).
40 Os sistemas de farmacovigilância pretendem identificar reações que, potencialmente, ocorrem apenas quando
dos tratamentos prolongados, que apresentam baixa incidência ou que costumam surgir em grupos populacionais
específicos.
O último método assinalado, a despeito de suas limitações, mais
adiante apontadas, com a larga experiência com a adoção do mesmo, nas últimas três décadas, pode ser considerado como eficaz, tendo sido esta a
opção do Programa Internacional de Monitorização de Medicamentos,
programa de notificação de reações adversas criado pela OMS com o objetivo
de identificar precocemente sinais de alerta com respeito à segurança dos
fármacos, bem como padronizar uma terminologia que facilitasse o
intercâmbio entre países e instituições. O Programa é coordenado pelo
The Uppsala Monitoring Centre – WHO Collaborating Centre for
International Drug Monitoring.
A Figura 6 sintetiza os componentes básicos que integram a estrutura
da informação requerida para a transmissão e avaliação de ‘alertas’ e da qual
constam, fundamentalmente:
• Origem dos dados (notificação espontânea, estudos formais ou
literatura).
• Fármacos (especialidade e/ou princípio ativo envolvido, condições de
autorização (dose recomendada, indicação, composição, etc), identificação
dos responsáveis pela autorização).
• Reação (descrição global dos casos que motivam o ‘alerta’).
• Medida reguladora (proposta ou já tomada).
• Informação adicional (sobre a utilização do medicamento, estudos
relacionados com o problema, descrição sumária de cada caso
individual).
Figura 6 – Estrutura básica da informação para transmissão de alerta rápido
Fonte: Montero, 1998a.
Participam, hoje, do sistema 71 países que enviam, sistematicamente,
informações sobre as notificações recebidas, à medida que as avaliam, codificam
e consolidam e que passam a fazer parte do banco de dados localizado
em Uppsala, na Suécia, onde foi instalado, em 1978, o Centro Colaborador
da OMS para o Programa Internacional de Farmacovigilância. Atualmente,
existem, na base de dados mencionada, cerca de três milhões de notificações
enviadas ao Centro por parte de todos os países participantes.
O sistema outorga atenção especial aos fármacos de comercialização
recente ou àqueles que provocam quadros clínicos graves ou, ainda, aos
efeitos indesejáveis não descritos até então ou que são pouco conhecidos. Os
profissionais de saúde – os médicos, em particular – são estimulados a comunicar,
de modo espontâneo e, preservada a confidencialidade dos dados, os
efeitos adversos que atribuem aos medicamentos por eles receitados.
Podem ser apontadas duas limitações no método da notificação
espontânea: a natureza voluntária da mesma, em alguns países, o que implica
sub-registro e a impossibilidade de gerar cálculo de incidência das reações,
em virtude de não estar disponível dado imprescindível ao mesmo, qual seja,
a população exposta.
Pode-se concluir que a notificação espontânea vem representado um
instrumento útil como alerta41 ante reações adversas ou para gerar hipóteses.
Tanto é assim que, o mencionado instrumento permitiu detectar os
primeiros casos de agranulocitose conseqüentes ao uso da clozapina (antipsicótico)
na Finlândia, em 1977 ou as novas reações adversas na Inglaterra,
relacionadas à hepatoxicidade devido ao ibufenac, em 1965 e à amiadorona,
em 1982 ou as reações extrapiramidais da metoclopramida, em 1975 ou,
ainda, as discrasias sanguíneas por mianserina, em 1981 (Madurga, 1998).
As decisões da autoridade reguladora, a partir dos informes que
vão sendo produzidos podem ir, desde as modificações nas condições de uso
terapêutico, autorizadas quando do registro do produto, até a suspensão ou,
em determinados casos, a retirada do medicamento do mercado.
A descrição isolada de casos de reações adversas – os chamados
case-reports – pode, também, constituir uma alternativa, ainda que bastante
limitada, pela menor potencialidade no estabelecimento de relações causais
consistentes.
No âmbito dos países-membros da UE, já muito antes de sua constituição
e do estabelecimento da EMEA e do Código Comunitário sobre
Medicamentos de Uso Humano (1991)42, já se outorgava importância à
farmacovigilância, tendo vários países tomado iniciativas – casos da Espanha
e Itália – no sentido da estruturação de sistemas de monitorização das reações
adversas43. Um dos primeiros passos dados na harmonização de procedimentos
em farmacovigilância foi estabelecer um mecanismo para a transmissão de
problemas quanto à segurança dos medicamentos que pudessem representar
risco, demandando uma ação reguladora urgente e de certa magnitude, o que
está coerente com o propósito de contar com um mercado farmacêutico
41 Segundo a OMS um ‘alerta ou ‘sinal’ consiste em uma informação comunicada de uma possível relação causal
entre um efeito adverso e um fármaco, quando esta relação antes, era desconhecida ou estava documentada de
forma incompleta. Rotineiramente, se requer mais de uma notificação para produzir um ‘sinal’, o que, também,
estará na dependência da gravidade da reação adversa incriminada e da qualidade da informação.
42 O Artigo 102 do Código reza que “os Estados-membros estabelecerão um sistema de farmacovigilância para
reunir informação útil para a supervisão dos medicamentos e, em particular, a respeito das reações adversas aos
medicamentos nos seres humanos e para a avaliação científica dessa informação” e, no artigo precedente refere
que “os Estados-membros poderão obrigar os médicos e outros profissionais sanitários a cumprir requisitos
específicos no que respeita à notificação de supostas reações adversas graves ou inesperadas, especialmente quando
a notificação se constitua em uma condição para a concessão de uma autorização de omercialização”
43 Os dez países pioneiros do Programa criado pela OMS, em 1968, foram Alemanha, Austrália, Canadá,
Dinamarca, EUA, Holanda, Irlanda, Nova Zelândia, Reino Unido e Suécia.
unificado, implicando uniformidade de conduta em relação, também, aos
produtos já comercializados (Montero, 1998a).
A padronização da mensagem eletrônica para o intercâmbio de
suspeitas de reações adversas foi objeto da ICH de 1997 e levou em conta
as vantagens da velocidade (uso de rede de telecomunicações), precisão
(os dados provêm de uma base de dados, com menor chance de introduzir
erros) e economia de gastos (com correio, papel, armazenamento,
distribuição) tendo tomado por base as seguintes premissas:
• contemplar as necessidades de todas as entidades que trocam, recolhem
e exploram, de forma permanente, a informação de interesse;
• poder ser utilizado para transmitir casos individuais de suspeitas
de reação adversa, independentemente da fase de desenvolvimento do
fármaco (pré ou pós-comercialização);
• contar com suficiente flexibilidade para incluir quaisquer dados que
possam ter relevância para a avaliação da reação adversa;
• ater-se a um padrão internacional de nomenclatura que permita a
transmissão direta entre bases de dados, uma vez definida a mensagem
(Montero, 1998a).
Para o ano de 2003, se previu a consolidação das atividades harmonizadas
de farmacovilância, particularmente no que se refere à comunicação
eletrônica entre autoridades reguladoras (EMEA, Agências reguladoras
nacionais) e laboratórios farmacêuticos e à utilização de padrões comuns a
partir do dicionário de terminologia médica (MedDRA) na codificação
de reações adversas, melhorando, em termos globais, o intercâmbio de informações,
com base nos acordos estabelecidos nas ICH (Madurga, 2002).
A Figura 7 sintetiza o fluxo de informações resultante da experiência
clínica dos fármacos, destacando-se a interferência sobre a mesma da farmacovigilância.
Nota-se que um dos inputs do sistema de documentação
provém das notificações espontâneas, sejam as enviadas aos Centros de
Farmacovigilância, sejam as publicações eventuais da literatura biomédica.
Figura 7 – Fluxo das informações relacionadas aos fármacos
Fonte: Madurga, 1992.