Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
Os acordos ADIPC e seus reflexos no acesso aos medicamentos
Nos anos 90, alterações significativas ocorreram no plano políticoeconômico
internacional. Essas alterações consolidaram propostas vinculadas
ao chamado neoliberalismo tendo como pressupostos categorias conceituais,
com enormes repercussões práticas, sobretudo para os países subdesenvolvidos
tais como: ‘estado mínimo’, ‘predomínio das leis de mercado’,
‘desregulamentação’, ‘privatização’.
Fazendo, hoje, uma avaliação objetiva chega-se à conclusão de que,
durante a década de 1990, ocorreu uma polarização gigantesca do poder e
da riqueza mundiais. E, no início do século XXI, pode-se considerar
ser consensual a idéia de que houve retumbante fracasso na promessa
… “sarado”, em 65% das situações, foram indicados ‘massas, polivitamínicos e aminoácidos’; em uma fração
bem menor do que o esperado, (4% dos balconistas) foi sugerido o uso de esteróides anabolizantes, mas uma
proporção similar indicou ‘outros hormônios’. Os estimulantes do apetite apareceram em 6,5% das indicações.
“globalitária” de um crescimento universal, eqüitativo e sustentado. Neste
período, na verdade, a América Latina talvez tenha sido a região onde mais
se acreditou e apostou na “nova era”. Como conseqüência, atualmente, em
vários países do continente, é evidente o tamanho do fracasso e da frustração,
sendo o que vem se passando no setor Saúde (vide item 3.1), apenas um
exemplo, entre tantos que poderíamos evocar para confirmar a veracidade da
assertiva. Vários estudos vêm sendo realizados tentando detectar o impacto
das políticas de descentralização e privatização no setor saúde, perpretadas
em países como Colombia, Chile, Costa Rica (Alvarez, 2002; Ugalde &
Homedes, 2002a, 2002b). A constatação feita por Alvarez, com respeito ao
caso particular da Colombia, certamente pode ser transposta para outros
países: no contexto do que o autor designa como “falácia neoliberal-neoclássica
em saúde”, existiria um comprovado aumento do gasto total em saúde
sem que se tenha atingido as metas de cobertura, nem superado as
iniqüidades relacionadas à capacidade das pessoas de pagarem pelos serviços
(Alvarez, 2002).
Além dos exemplos na América Latina, os chamados “ajustes estruturais”,
também fracassaram nos processos de transição do Leste europeu e
nos de alguns países asiáticos. Uma apreciação minimamente crítica sobre
as políticas econômicas centradas na privatização, na liberação comercial
unilateral e no desmonte de políticas públicas estratégicas, chegará à
conclusão de que as mesmas incrementaram a dependência em lugar de
favorecer a tão decantada interdependência. Em relatório recente (World
Development Report, o Banco Mundial efetua autocrítica e, já na sua introdução
se declara que, na maioria dos países, a maior parte dos investimentos
oficiais em saúde e educação atende os 20% mais ricos mais que os 20% mais
pobres. Ao contrário de relatórios anteriores, o mercado deixa de ser visto
como a panacéia para os problemas de crescimento e pobreza de um país e a
ação do Estado assume relevância, fazendo, supreendemente elogios à
atuação dos governos de Cuba e da China, afirmando-se textualmenete que “assim como democracias em pleno funcionamento não garantem que os pobres se
beneficiarão dos serviços públicos, alguns Estados de partido único conseguem
bons resultados em saúde e educação” (Soliani, 2003).
Em novo estudo, ainda mais recente – Desigualdades na América
Latina: Rompendo com a História – a América Latina é a região do mundo
onde a desigualdade é mais gritante, não tendo saído do lugar nos últimos
50 anos. O trabalho cruzou 52 pesquisas realizadas em 3,6 milhões de
domicílios de 20 países, entre 1990 e 2001, concluindo que os 10% mais
ricos da região detêm 40% da renda global, ao passo que, os 10% mais
pobres ficam com 1,6%. Afirma-se que “com exceção da África subsaariana, a
América Latina é mais desigual em qualquer indicador: renda, gastos com
consumo, influência política, poder de decisão e acesso a serviços como saúde e
educação” acrescentando, ainda que, “as cinco últimas décadas tiveram ciclos de
forte expansão econômica e recessões, baseados no consumo interno ou nas exportações,
intervenções do Estado e reformas liberais; ditaduras e democracias. Essas
mudanças não modificaram em nada a situação de nenhum dos países em termos
de distribuição de renda” (Canzian, 2003).
Certamente a globalização, o que tem conseguido, em grande medida, é privilegiar a eficiência econômica e o aumento da produtividade, em benefício
dos países ricos, devendo os demais ajustar-se às imposições daqueles
países. E foi precisamente isto o que ocorreu, nos últimos dez anos, no contexto
de governos que aderiram a linhas de ação fundadas no neoliberalismo.
Podem ser citadas, como exemplo, medidas com vistas ao controle do déficit
fiscal e da inflação, assim como a implementação de políticas cujas
prioridades têm se orientado, fundamentalmente, para o controle do déficit
público e da dívida pública interna e externa, objetivos que levam à sujeição
aos ditames de organismos internacionais, impondo-se políticas monetárias e
de cortes orçamentários23 que vêm incidindo nos programas sociais ou
naqueles que poderiam conduzir a uma melhor repartição da renda.
Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia de 2001, em entrevista
afirmava com propriedade (Caramel, 2001) que “a liberalização comercial
contribuiu para a degradação das economias de muitos países em desenvolvimento
porque os expôs à incerteza dos mercados internacionais”. Essa
liberalização comercial, segundo ele, “foi planejada pelos países ocidentais para
os países ocidentais dando muito pouca atenção a suas conseqüências sobre os
demais países. Assim, eles conseguiram vantagens desproporcionais. E as regiões
mais pobres do mundo hoje estão piores devido aos efeitos do comércio”.
23 No caso da Espanha, o gasto social passou de 24% do PIB em 1994, para 20% em 2000. Essa diminuição, no
entanto, segundo Navarro (2002) não se deve à globalização ou à integração econômica, mas aos interesses do
capital financeiro das classes dominantes que se beneficiam com as políticas regressivas.
Em outras palavras, nos deparamos, hoje, com enormes contradições
no seio do capitalismo, tanto no que diz respeito ao privilegiamento dos
investimentos especulativos, frente aos produtivos24, como no que concerne à coexistência de hiperprodução e subconsumo, pois, tal como ressalta
Navarro (2002), o crescimento das desigualdades ocorre em um mundo em
que, por um lado, se tenta frear a produção e, por outro, uma criança morre
de fome a cada dois segundos, em um total de 14 milhões por ano, o
equivalente a 60 bombas idênticas à que foi lançada sobre Hiroshima.
As novas regras que passaram a dominar o intercâmbio comercial entre
os países sofreram alterações significativas a partir da criação da Organização
Mundial de Comércio (OMC), em janeiro de 1995. Um dos aspectos de
maior importância, para os países subdesenvolvidos, certamente reside no
pressuposto proclamado quando da criação da OMC, segundo o qual as
regras introduzidas para os “direitos de propriedade intelectual” provocariam
o aumento da transferência e difusão de tecnologia, incremento do investimento
direto estrangeiro e reforço da pesquisa e do desenvolvimento locais.
A experiência acumulada, contudo, não permite fazer fé nesta suposição.
Antes, o sentimento é o oposto, em especial pelo fato de que os mencionados
direitos, já nos primórdios das negociações sobre o tema, explicitamente
estipulavam que os mesmos terão por base o Artigo 1 do GATT (General
Agreement on Tarifs and Trade). O mencionado artigo reza que todo Estadomembro
goza da liberdade de perseguir seu próprio regime de proteção da
propriedade intelectual, podendo fazer uso dessa liberdade arbritariamente e
de forma discriminatória contra produtos ou mercadorias importadas de
outro país. O Acordo Final firmado, particularmente no que tange aos
chamados TRIPs (Trade Related Intellectual Property Rights Agreement) 25,
além de representar uma transferência de poder sem precedentes, das nações
para corporações transnacionais, pode de fato ser considerado, nas palavras
24 Segundo Navarro (2002) as políticas neoliberais se caracterizam por dois aspectos: um, a desregulamentação dos mercados financeiros, gerando uma movimentação diária de 1,7 trilhão de dólares, a maior parte de natureza especulativa; o outro, relaciona-se ao enorme crescimento da desigualdade de renda, no plano internacional, de tal forma que, tão somente 220 pessoas mais ricas acumulam a mesma renda que corresponde a 45% da população mundial.
25 Acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio (Acordos ADPIC, assim referidos, a partir de agora, ao longo do texto). Além deste e do GATT, outros dois acordos firmados no âmbito da OMC apresentam impacto sobre o setor saúde: o Acordo que trata de obstáculos técnicos ao comércio e o que versa sobre a aplicação de medidas sanitárias e fitosanitárias.
de Balasubramaniam “o acordo com maior grau de não-transperência,
desprovido de responsabilidade pública e antipovo e pró transnacionais da
história das negociações e acordos internacionais. O acordo TRIPs, em particular,
negará a bilhões de pobres (homens, mulheres e crianças) de todo o mundo,
o acesso até mesmo a um número limitado de medicamentos essenciais para o
tratamento de doenças comuns” (Balasubramaniam, 1998). As conseqüências,
seja para o caso específico do Brasil, seja para países com características
socioeconômicas distintas, já podem ser detectadas, sendo o caso dos
anti-retrovirais, para a AIDS, apenas um exemplo que ilustra mui apropriadamente,
o conflito de interesses em jogo (Barros, 2001).
No contexto da crise representada, sobretudo, pela pandemia da AIDS
e como fruto de pressões, tanto de ONGs, como dos próprios governos de
países subdesenvolvidos, a Conferência Ministerial, realizada em Doha, em
novembro de 2001, a despeito das pressões da indústria farmacêutica e de
alguns países desenvolvidos, em sua declaração final, terminou por aceitar
que a gravidade de alguns problemas que afetam muitos países em desenvolvimento
ou menos desenvolvidos contribuiu para que se concordasse que “os Acordos TRIPs não devem impedir os Estados-membros de tomar
medidas para proteger a saúde pública. E ainda que reiterando nosso interesse
nos mencionados Acordos, afirmamos que os mesmos podem e devem ser interpretados
e implementados de forma a apoiar o direito dos membros da OMC a
proteger a saúde pública e, em particular, a promover o acesso dos medicamentos
para todos”. A posição da delegação brasileira na mencionada Conferência
foi muita clara e incisiva no sentido de que “há circunstâncias em que os
conflitos de interesse hão de exigir dos Estados o exercício de sua suprema
responsabilidade política...O Brasil promove e acata os direitos de propriedade
intelectual. No entanto, se as circunstâncias o requerem, tal como outros países,
o Brasil não hesitará em fazer uso pleno da flexibilidade permitida pelos
Acordos TRIPs no sentido de salvaguardar a saúde dos seus cidadãos” (apud
Correa, 2002).
Infelizmente, a reunião da OMC, realizada em dezembro de 2002, e
que fora agendada no encontro de Doha não manteve coerência com os
postulados da mesma, tendo os EUA, com apoio indireto da UE, bloqueado
a aprovação de acordo pelo qual os países pobres poderiam importar medicamentos
básicos sem a autorização dos laboratórios proprietários da patente.
Houve pressão para que países africanos restringissem seu direito a importar
genéricos para tratar um elenco de 15 enfermidades, entre as quais malária,
AIDS e tuberculose. Países produtores de genéricos, como Brasil e Índia
e algumas ONGs, insistiram, sem êxito, para que outras doenças, como a
hepatite C e B, asma, diabetes, pneumonia e doenças cardiovasculares,
viessem a ser incluídas na lista (Bayon, 2002). Segundo a ONG Intermon-
Oxfam, o fracasso nas negociações para que países pobres venham a ter acesso
a medicamentos genéricos baratos não deve ser atribuído, exclusivamente, à
“escandalosa” iniciativa dos EUA, mas também a UE, Canadá e Suiça
(Anônimo, 2002d). Nova Conferência Ministerial, realizada em setembro
de 2003 em Cancún, México, deveria ter apreciado acordo firmado no âmbito
do Conselho Geral da OMC, após intensas e difíceis negociações. Pelo
mencionado acordo, nações pobres ficariam autorizadas, em virtude de crises
de saúde pública, a importar genéricos de países em desenvolvimento.
Firmaram o documento inicial cinco países, contemplando detentores de
patentes (EUA), fabricantes de genéricos (Índia e Brasil) e países, vítimas
de problemas de saúde pública (Quênia e África do Sul). Os EUA impuseram
várias restrições às exportações referidas, a exemplo de sistemas de rotulação
e embalagens que estabeleçam diferenças entre os genéricos e os produtos
equivalentes patenteados, com o propósito de inibir eventual reexportação.
Apesar das críticas de ONGs como MSFe Oxfam, os termos dos acordo
foram vistos de forma favorável pelo Brasil. A reunião em questão, no entanto,
fracassou profundamente, tendo o Brasil e outros países subdesenvolvidos
liderado a reação a uma alteração na pauta pretendida pelos países centrais.
Sob a ótica do setor saúde, as normas de propriedade intelectual terão
de considerar os interesses de saúde pública como uma prioridade. As normas
vigentes, implementadas nos países desenvolvidos, podem não ser as mais
adequadas para países que têm sérias dificuldades em satisfazer as necessidades
de saúde da sua população, tendo, pois, de lançar mão da flexibilidade
de dispositivos e salvaguardas, incluídos nos novos acordos. Cumpre,
ademais, ressaltar que a indústria tem utilizado artimanhas para prorrogar,
tanto quanto possível, a vigência das patentes. Correa exemplifica, apropriadamente,
com uma série de fármacos, algumas das estratégias adotadas, em
relação à paroxetina, amlodipino, claritromicina, fluconazol, fexofenadina,
eritropoeitina recombinante e ofloxacino/levofloxacino. Segundo o autor, a
flexibilidade existente na regulamentação patentária, nos casos exemplificados,
foi utilizada para impedir uma competição legítima, interferindo, desta
forma, na disponibilidade de produtos alternativos, com preços mais
acessíveis. Na oportunidade, também se evidencia o fato de que, a cada
ano, grande quantidade de patentes é outorgada sobre produtos de menor
relevância ou sobre substâncias preexistentes na natureza e que, mais que
inventadas, foram descobertas (Correa, 2001).
Vale recordar, ademais que, a partir dos mais recentes estudos e
descobertas objetivas, resultantes dos avanços nos campos da engenharia
genética e da biotecnologia, particularmente com o mapeamento do genoma
humano aliás, alcançados, simultaneamente, por um consórcio de instituições
públicas e pela empresa Celera Genomics, vieram à tona, outra vez, os
conflitos de interesses entre os propósitos mercantis e aqueles relacionados ao
bem comum. Os mencionados conflitos se evidenciam, claramente, na
questão do patenteamento de organismos vivos. Ressalte-se que, ao passo que
qualquer pessoa interessada pode ter acesso aos dados do Projeto Genoma
Humano, desde que se comprometa a não fazer comércio com a informação
recebida, o mesmo não ocorre em relação ao banco de dados da empresa
antes mencionada, devendo-se salientar que Celera se beneficiou, desde
o princípio, da informação disponibilizada pelo consórcio público
internacional. Já no ano de 2000, a empresa havia dado entrada ao pedido
de 7000 patentes provisórias, alegando ter chegado a descobertas em relação
às quais pretendia solicitar, formalmente o patenteamento em um prazo
de um ano. O propósito era, segundo o seu presidente, o cientista Craig
Venter, selecionar entre 100 e 300 genes que contem com os pré-requisitos
de utilização comercial e patenteá-los. Em depoimento dado em
audiência pública, realizada em abril de 2000, no Congresso dos EUA, o
mencionado cientista afirmou que “mudanças na lei de patentes devem
ser consideradas no contexto dos efeitos que terão nos esforços que realizam
as companhias farmacêuticas para descobrir novos fármacos”. Alegava,
também, que era necessário proteger a indústria, considerando que
ela tinha que fazer frente a gastos da ordem de 300 a 800 milhões de
dólares a cada vez que tinha que corresponder às exigências da FDA
para aprovar um novo medicamento. O cientista mencionado declarava,
ademais, falando em nome da Biotechnological Industry Organization
(BIO),26 em outra audiência, realizada mais adiante (julho de 2001)
que “o público deve ter confiança de que poderá beneficiar-se de todo o
desenvolvimento biotecnológico sem temer que as informações obtidas venham a
ser usadas contra ele...Atualmente, 117 produtos biotecnológicos estão ajudando
250 milhões de pessoas em todo o mundo. Outros 350 medicamentos, voltados
para o combate de 250 doenças, encontram-se em fase final de desenvolvimento.
Estes produtos se dirigem a enfermidades até agora, descobertas...BIO
vem apoiando, faz tempo, a legislação federal que assegurará que a informação
médica de uma pessoa, incluindo informação genética, não será mal utilizada.
Conseqüentemente, BIO respalda a legislação, cuidadosamente, elaborada
que proíbe a discriminação em seguros de saúde, baseada na informação
genética” (apud Ron, 2002). Na aparência, portanto, pareceria que os
conflitos entre investigação científica a serviço da humanidade e estratégias
e interesses empresariais estariam solucionados (sic).