Políticas Farmacêuticas: a Serviçodos Interesses da Saúde?
José Augusto Cabral Barros
A harmonização farmacêutica e os conflitos de interesses
Sem querer obscurecer os pontos positivos que o processo de harmonização
pode trazer enquanto contribuição para racionalizar procedimentos
de registro e para controle dos fármacos, de maneira geral, assim como
em função da melhoria dos procedimentos de gestão, administração e
uniformização de critérios de atuação das agências reguladoras, faz-se
mister refletir, no entanto, sobre as discrepâncias entre os interesses da saúde
pública e os do mercado, presentes na teoria e prática da ‘harmonização’
(recorde-se que, na origem – e, de certo, na continuidade de sua operacionalização
– as facilidades para o intercâmbio de produtos, com a
coincidência dos padrões a serem seguidos para assegurar a ‘qualidade’, além
de engendrar estímulos à inovação, foram as motivações básicas para
desencadear o processo de harmonização farmacêutica). É sintomático que,
mesmo que as agências reguladoras tenham parte ativa, a gestão do sistema,
no que concerne à ICH, esteja nas mãos da IFPMA .
Desencadeada a ICH, tem-se detectado a tomada de decisões que tem
muito mais a ver com estratégias e interesses de mercado, a exemplo, tal
como já foi antes comentado, das propostas de agilização dos procedimentos
de aprovação de novos produtos, introduzindo-os o mais precocemente
possível nos mercados, bem como da flexibilização e diminuição cronológica
dos ensaios pré-clínicos ou clínicos, com o fim de ampliar o desfrute da
vigência da patente e reduzir despesas (testes de toxicidade em animais que,
por norma precedente, requeria a exposição dos mesmos por período mínimo
de um ano, são tidos pelo ICH Expert Working Group como passíveis
de fornecer a informação requerida a partir de testes com nove meses de
duração). A periodicidade com que as empresas devem comunicar o surgimento
de efeitos adversos pós-comercialização, fica a critério das mesmas.
Urge estar atento para o fato de que temas de extrema importância
não têm merecido a atenção que deveria por parte da ICH, a exemplo da
necessidade do estabelecimento de parâmetros para a revisão de fármacos
obsoletos, uso da DCI, normas para o controle da propaganda, transparência
sobre preços, informação a ser prestada aos prescritores e consumidores,
processos transparentes no que diz respeito à monitorização da segurança
dos medicamentos (Figueras, 2003).
Naturalmente, o processo, em seus diversos componentes, em que está
envolvida a ICH não diz respeito tão somente a aspectos “técnicos” ou “logísticos”, que interessariam apenas aos gestores das empresas ou, quando
muito, aos cientistas. Os requisitos que venham, por exemplo, a orientar a
duração dos testes pré-clínicos e clínicos, os tipos de animais que venham a
ser incluídos nos primeiros e a duplicação dos testes daí decorrentes,
com os achados que venham a ser encontrados em termos toxicológicos,
interessam aos potenciais usuários dos fármacos sob estudo. As conotações
políticas e éticas são, pois, constituintes obrigatórios de todo o processo de
harmonização e, como corolário, das decisões que venham a ser tomadas
(Abraham, 2002b).
As orientações formuladas para obtenção de padrões de excelência
em termos de ‘qualidade’, segundo seus proponentes, trará benefícios ao
público, opinião que não é compartilhada pela própria OMS ou organismos
de defesa dos consumidores que consideram ser potencialmente
insignificantes os ganhos terapêuticos dos mencionados protocolos os quais,
em verdade, podem incrementar custos, frear a competição e contribuir para
aumento do preço final dos medicamentos e, em conseqüência, acarretar
obstáculos ao seu acesso (Anônimo, 2003a; AIS, 2002). Normas que se
justificam ao ser formuladas e implementadas em países ricos podem trazer
o risco de que, tão-somente medicamentos produzidos nos mencionados
países poderão gozar da comercialização internacional. Obviamente, pode-se
estar gerando obstáculos adicionais para o desenvolvimento da capacidade de
P & D de muitos países, um dos pilares da crise nesse campo, em especial no
que tange à superação dos problemas relacionados à disponibilidade de fármacos
para as ‘enfermidades esquecidas’ ou ‘negligenciadas’ (vide item 3.7).
As discussões e normativas da ICH têm ignorado completamente as
mulheres, a despeito das evidências de que elas utilizam mais medicamentos
do que os homens e de que apresentam reconhecida vulnerabilidade, sabendose
que muitos dos desastres envolvendo a iatrogenia medicamentosa têm tido
as mulheres como vítimas preferenciais (os casos do dietilestilbestrol e da
talidomida são exemplares – Wolffers, 1997), assim como o dado de que dos
dez medicamentos sujeitos à prescrição retirados dos EUA, por questões de
segurança, entre 1997 e 2001, oito afetavam mais as mulheres, metade
porque era mais consumida por mulheres e outro tanto devido à maior
propensão das mesmas a sofrerem os efeitos danosos dos fármacos incriminados
(Anônimo, 2003a). Vários seriam os argumentos que justificariam
a inclusão de mulheres nos ensaios clínicos a exemplo da metabolização
distinta dos fármacos, a influência de componentes do ciclo reprodutivo,
vulnerabilidade ampliada quanto a efeitos adversos (Anônimo, 2003a).